Um novo ser humano está surgindo, diz Siddhartha Mukherjee em A canção da célula (tradução de Berilo Vargas; Companhia das Letras; 528 páginas), seu terceiro livro de divulgação científica.
Já na introdução, o médico indiano de 53 anos apresenta ao leitor duas criaturas deste admirável mundo novo: Sam P. (cujo nome completo foi preservado por razões de privacidade) e Emily Whitehead sofriam de câncer e foram tratados com técnicas revolucionárias de terapia celular.
Sam, um bom amigo de Mukherjee, tinha um câncer de pele muito agressivo. Em 2016, recebeu um medicamento que faz com que as células T, responsáveis pelas linhas de defesa mais sofisticadas de nosso sistema imunológico, ataquem células cancerígenas – sem essa interferência, elas seriam incapazes de reconhecer o câncer como uma patologia a ser combatida.
Vítima de um tipo letal de leucemia que afeta sobretudo crianças, Emily tinha sete anos quando se submeteu, em 2012, a uma terapia experimental no Hospital Infantil da Filadélfia: células T foram retiradas de seu corpo, submetidas a modificações genéticas, e então reinseridas em sua corrente sanguínea para combater o câncer.
Por meio de técnicas diferentes, Sam P. e Emily Whitehead tiveram suas células imunológicas reconfiguradas. Como esperado, elas passaram a atacar o câncer. Infelizmente, as células T de Sam P. também começaram a destruir tecidos saudáveis, causando danos graves a seu fígado. Seu câncer voltou com mais força e ele morreu em 2017. Emily também teve percalços no tratamento, mas acabou superando a leucemia. Sua remissão já dura onze anos.
A expressão “novo humano” pode sugerir que Mukherjee está anunciando revoluções tecnológicas que abrirão as portas da imortalidade. Nada disso: o autor exalta a ciência, sim, mas sem fanfarra. Ele emprega a expressão “novo humano” em sentido restrito, preciso: “um humano reconstruído, com células modificadas”. Sam e Emily tiveram suas células modificadas. Só Emily foi salva por esse processo.
Boa parte de A Canção da Célula é dedicada a pesquisas de ponta da medicina. Em linguagem clara e elegante, Mukherjee explica, por exemplo, o método que a empresa de biotecnologia Verve Therapeutics está desenvolvendo para editar geneticamente as células do fígado que regulam o metabolismo do colesterol. O objetivo é reduzir os níveis dessa substância no sangue, minimizando o risco de doenças cardíacas. O processo será realizado por nanopartículas inseridas por cateteres nas artérias que levam ao fígado, sem necessidade de uma cirurgia invasiva.
O livro também fala das novas terapias celulares que, espera-se, um dia poderão curar condições crônicas graves como o diabetes tipo 1 e anemia falciforme.
Mukherjee entusiasma-se com esses avanços da medicina, mas é um entusiasmo mitigado pela cautela. No capítulo sobre a pandemia de covid 19, ele observa que o vírus Sars-COV-2, com suas estratégias insidiosas para driblar o sistema imunológico, deixou milhões de mortos e uma lição de humildade para médicos e pesquisadores.
Oncologista com formação em imunologia e hematologia, Mukherjee trabalha no centro médico da Universidade Columbia, em Nova York. Lançou-se como autor em 2010, com o celebrado O imperador de todos os males, obra sobre o inimigo que ele combate na clínica oncológica.
Extensa e cativante aula de biologia, seu novo livro lembra que a célula é o centro da medicina: toda patologia representa, no limite, um problema nas unidades básicas que formam tecidos e órgãos.
Mukherjee conduz o leitor em um mergulho microscópico no interior da célula para conhecer suas diferentes organelas – os mini-órgãos encarregados de funções como a produção de energia e a síntese de proteínas. Ele desembaraça a complicada interação entre as diferentes células que compõem o sistema imunológico e explica como um sistema de proteínas longas e finas dentro das células do coração fazem o órgão pulsar.
De pioneiros como o inglês Robert Hooke e o holandês Antoine van Leeuwenhoek, que observavam células em microscópios rudimentares no século 17, aos canadenses Ernest McCulloch e James Till, que desbravaram a pesquisa de células tronco, os cientistas que ao longo do tempo desvendaram os fundamentos da vida são flagrados em atividade. Entre todos, o grande herói de Mukherjee é o prussiano Rudolf Virchow, que no século 19 consolidou o entendimento da célula como base de todos os organismos. “A vida é, em geral, atividade celular,” ele disse em 1845.
Ao longo do livro, a vida dos cientistas e a vida das células mesclam-se à vida do próprio autor, que ilustra diferentes tópicos com casos que acompanhou em sua atividade clínica. A canção da célula nos convida a admirar o bem azeitado funcionamento íntimo do corpo humano e a reconhecer o trabalho de cientistas que abrem o caminho para novas terapias e remédios. Ao mesmo tempo, Mukherjee nota que, nesta grande era de descobertas, ainda restam enigmas resistentes à investigação.
O câncer é um deles. Entre as ferramentas mais promissoras no seu tratamento, está a terapia com células T manipuladas que salvou Emily Whitehead. No entanto, ninguém sabe dizer por que ela tem bons resultados contra linfomas e leucemias e não contra cânceres de mama ou ovário.
“Não sabemos o que não sabemos” é a última frase do capítulo sobre câncer em A canção da célula. Velhos e novos humanos ainda têm muito a descobrir.