BERLIM — Ao entrar no museu, dispa-se das convenções habituais de uma exposição de arte e deixe qualquer objeto que esteja ocupando as suas mãos na chapelaria.
Em Lygia Clark: Retrospectiva — que fica na Neue Nationalgalerie até 12 de outubro antes de ir para Zurique — o público é convidado a interagir ativamente com as criações de “uma das artistas mais importantes do século XX”.
Não sou eu quem está dizendo; é a curadoria, que sustenta que a abordagem interativa de Lygia Clark (1920-1988) ajudou a redefinir a relação entre artista, espectador, obra de arte e espaço — o que faz com que seu trabalho continue atual e siga influenciando a formação de artistas contemporâneos.
“Em museus não é permitido tocar nas obras e as pessoas desejam fazê-lo,” Irina Hiebert Grun, uma das curadoras da exposição, disse ao Brazil Journal. “As obras de Lygia Clark abordam os sentidos para levar os participantes a uma percepção mais intensa de seus corpos, o que possibilita o autoconhecimento e a criatividade.”
A regra é clara: se a obra estiver sobre um carpete vermelho, é permitido tocar!
Antes da quebra de protocolo, no entanto, há um período de aclimatação — assim como foi a carreira da mineira de Belo Horizonte que baseou suas atividades profissionais no Rio e em Paris.
Com cerca 120 obras e respeitando alguma ordem cronológica, a retrospectiva começa com os quadros que Lygia pintou entre o fim dos anos 40 e os anos 50.
Seus trabalhos começam figurativos e depois assumem formas geométricas, uma transição de influências modernistas para as concretistas.
Mas não demora a ficar claro que Lygia quer se emancipar dessas referências – e libertar sua arte do espaço restrito de um quadro.
Nas séries Descoberta da Linha Orgânica (1954) e Quebra da Moldura (1954), a artista dá o primeiro passo nessa direção — extrapolando os limites das telas e utilizando suas molduras como um espaço de continuação das obras — e não olha mais para trás.
Com o conceito de moldura superado, Lygia colocou sua obra em contato com o mundo real e lhe deu contornos tridimensionais, fazendo incursões no universo da arquitetura e ajudando a criar as bases do movimento neoconcreto no Brasil.
Juntamente com a outra Lygia (Pape) e outros expoentes do neoconcretismo, passou a trabalhar a obra de arte como um fenômeno orgânico e vivo, o que depois evoluiu para a inclusão de sentidos para além do visual em suas obras.
O tato, por exemplo, fica em evidência na aclamada série Bichos (décadas de 60 e 70), uma coleção de esculturas geométricas articuladas — feitas de placas metálicas conectadas por dobradiças — que ocupam a primeira ala interativa da exposição.
Em seguida surgem os Objetos Sensoriais (1966-1967), incluindo óculos, máscaras e trajes que estendem a experiência sensorial do receptor a todo o corpo.
A curadoria disponibilizou réplicas de obras de ambas as séries para que os visitantes possam manipulá-las e senti-las como Lygia planejou.
Isso não é exatamente uma novidade, pois exposições recentes na Pinacoteca de São Paulo e na Whitechapel Gallery em Londres já haviam proposto experiências semelhantes.
Mas a curadoria da Neue Nationalgalerie estendeu a interatividade da sua mostra à próxima fronteira do trabalho de Lygia, as performances coletivas — desenvolvidas pela artista sob o conceito de Corpo Coletivo.
Fiquei embasbacado com Túnel (1968), em que duas ou mais pessoas se movem dentro de um tecido estreito e flexível de 50 metros de comprimento que simula a constrição de um canal de parto.
Observei a luta de uma mulher para atravessar toda a extensão do túnel por pelo menos 15 minutos. Quando sua cabeça finalmente apontou para fora do tecido, senti uma sensação de alívio como poucas vezes vivenciei.
Depois deste esforço físico e mental, nada mais justo que a exposição nos leve para a última parada do trabalho de Lygia — um método de terapia corporal batizado de Estruturação do Self (1976), em que objetos estimulantes entram em contato com diferentes partes dos corpos “dos pacientes” e ajudam a destravar novas percepções e fantasias escondidas.
Transcendental.
Se você não quiser arregaçar as mangas de todo, artistas performarão a obra de Lygia na exposição às quintas-feiras e domingos. Mais informações no site.
Ah, e se você vai passar por Berlim neste verão europeu, a Neue Nationalgalerie preparou uma programação ampla ao redor da mostra, uma verdadeira Lygiapalooza.
Em 27 de julho, por exemplo, haverá uma edição do festival de música Psicotrópicas no terraço do museu, com apresentações do lendário Hermeto Pascoal e de artistas em ascensão como Jota.pê e TUYO.
Haverá ainda apresentações de artistas contemporâneos e leituras de obras de escritoras brasileiras em agosto; e um simpósio acadêmico sobre Lygia no início de outubro.