Nos idos dos anos 50, Tarsila do Amaral fez o que certamente se qualificaria como um dos piores negócios da história: trocou um Picasso por uma casinha em Perdizes, um bairro de São Paulo.
Em dificuldades financeiras desde a crise de 1929 – que transformou em pó a fortuna da família de cafeicultores do interior de São Paulo –, Tarsila foi aos poucos se desfazendo de uma belíssima coleção de Brancusis, Modiglianis, Delaunays e Légers: obras que comprou diretamente dos artistas com quem conviveu em animados saraus na Paris dos anos 20.
As obras dela própria, Tarsila, não valiam nada.
Setenta anos depois, a artista nunca esteve tão valorizada – e tão pop.
As recentes exposições no Instituto de Arte de Chicago e no MoMA em Nova York, em 2017 e 2018, e a aquisição do quadro “A Lua” pelo próprio MoMA – comprado há dois meses da família Feffer por supostos US$ 20 milhões, o maior preço pago por uma obra de artista brasileiro – despertou ainda mais o interesse pelos poucos trabalhos da artista disponíveis no mercado.
O marchand Jones Bergamin está entre os assediados. Ele é dono do “A Rua”, obra onírica de Tarsila da fase antropofágica e que integra a exposição “Tarsila Popular”, em cartaz no MASP.
“A gente nunca pode falar que não vende. A família Feffer deve ganhar por dia o que eu ganho por ano e vendeu. Mas por enquanto as ofertas que recebi não me emocionaram.”
Desde que circulou a informação de que o MoMA estava procurando uma obra de Tarsila, outros museus, como a Tate Modern e o George Pompidou andaram sondando marchands no Brasil. (O espanhol Reina Sofia comprou sua Tarsila – “A Família” – bem antes, em 2003.)
A oferta de quadros, porém, é baixíssima. Diferentemente de um Picasso, que deixou nada menos que 45 mil obras, Tarsila deixou pouco mais de 2 mil, das quais apenas 240 são pinturas. E nem todas interessam: os grandes colecionadores só têm olhos para as fases Pau Brasil e Antropofagia, dos anos 20. São cerca de 20 obras, sendo que boa parte já está em museus.
Além do “A Rua”, há dois quadros altamente cobiçados em mãos particulares: “Sol Poente” e “Sono”, pertencentes à coleção Boghici.
Depois que Jean Boghici, um grande marchand, faleceu em 2015, o assédio à viúva Geneviève e às filhas do casal tem sido frequente. “A cada três meses minha mãe liga pra Geneviève, mas ela não quer saber de vender”, diz o marchand Carlos Dale.
Na ausência de óleos, desenhos da fase antropofágica também são bastante valorizados. Na última SP-Arte, Dale estava pedindo US$ 800 mil por um estudo do Abaporu. Vendeu “com algum desconto”, diz, sem revelar o preço exato.
Nos últimos 15 anos, Dale vendeu ainda três óleos de Tarsila.
O recorde de preço antes da aquisição pelo MoMA foi um quadro vendido entre particulares no Brasil há uns dez anos, por US$ 15 milhões.
Marchands ouvidos pelo Brazil Journal dizem acreditar que o MoMA pagou barato. Havia no Brasil quem estivesse disposto a pagar US$ 30 milhões. Mas a família Feffer preferiu ver Tarsila consagrada na coleção do MoMA. (No momento, ela divide a sala com “Garota no Espelho”, de Picasso.)
Tarsila sempre foi popular, mas o interesse por sua obra aumentou depois da venda do Abaporu nos anos 90 para o argentino Eduardo Costantini, por US$ 1,3 milhão. A venda causou comoção geral. (O quadro, estrela do Malba em Buenos Aires, já recebeu ofertas de US$ 30 milhões – mas não está à venda.)
A raridade de poder ver o Abaporu em solo nacional contribui para atrair grandes públicos para a exposição de Tarsila. “É muita miopia chiar quando esses quadros são vendidos para o exterior. É fundamental para o reconhecimento do artista que ele tenha obras em museus importantes no exterior”, diz Maria Alice Milliet, crítica de arte e biógrafa de Tarsila.
Desde a abertura em 4 de abril, mais de 10 mil pessoas foram ao MASP fazer selfies com o Abaporu.
Espera-se que “Tarsila Popular” – com 92 obras – atraia 250 mil visitantes nos quatro meses de exposição. É metade do público que frequentou o MASP em todo o ano passado, um ano recorde.
Para efeito de comparação, quando o Abaporu esteve em São Paulo pela última vez, na Pinacoteca em 2008, atraiu 108 mil visitantes (mas ficou só 60 dias em cartaz).
Se hoje a artista estampa Havaianas e frequenta as passarelas da Osklen, muito se deve ao esforço da sobrinha-neta, Tarsilinha do Amaral, uma apaixonada pela vida e obra de Tarsila e que tem trabalhado dia e noite para promover e manter Tarsila em evidência.
Esse trabalho não vem de hoje. Durante muitos anos, a família não cobrou direitos autorais pela inclusão das imagens em livros didáticos – fazendo com que toda criança em idade escolar tomasse contato com imagens de Abaporu e Operários, principalmente.
Tarsila já foi perfume do Boticário, ilustrou caixas de lápis de cor da Faber Castell e estampou tapeçarias by Kami. Também já foi personagem de minissérie da Globo – “Um Só Coração” (2004), de Maria Adelaide Amaral –, e teve uma réplica de “Paisagem com Ponte” decorando uma cena em “A Pele Que Habito” (2011), de Almodóvar.
A pressão dos herdeiros para ganhar dinheiro é grande, diz Tarsilinha, que responde como diretora da Tarsila do Amaral Empreendimentos Culturais. São 16 sobrinhos e sobrinhos-netos que dividem os rendimentos de direitos autorais e uso de imagem em produtos comerciais, exposições e livros. (Tarsila também teve uma filha e uma neta que morreram antes dela.)
Tarsilinha não revela o faturamento. Mas de dois anos para cá, a demanda cresceu de tal forma que ela passou a se dedicar à promoção de Tarsila em tempo integral: seja negociando contratos comerciais, frequentando eventos no mundo das artes ou dando palestras em escolas e universidades. Antes, dava aulas de equitação – e respondia um ou outro email sobre Tarsila que chegava por semana.
Tarsilinha se inspira na Picasso Administration, entidade que administra o patrimônio dos herdeiros do espanhol e fatura US$ 8 milhões em royalties por ano. Mas ao contrário de Tarsila, que morreu com parcos recursos, Picasso deixou muitas propriedades e investimentos: seu patrimônio foi estimado em US$ 250 milhões nos anos 80.
No dia da abertura no MASP, Tarsilinha ouviu de uma conhecida, espantada com a popularidade do evento: “Fácil virar Romero Britto, hein?”.
“Jamais isso vai acontecer”, rebate. “Sou muito criteriosa e recuso muita coisa que considero que não tenha a ver com a imagem da minha tia.”
Tarsilinha ainda tem pela frente 24 anos de exploração da imagem da tia-avó, que faleceu em 1973, aos 87 anos, em cadeira de rodas e num pequeno apartamento em Higienópolis. (A lei faculta 70 anos até que os trabalhos caiam em domínio público.)
Hoje ela batalha para ver Tarsila retratada em um filme, um documentário e um desenho animado, e para firmar um contrato com uma grande marca de perfumaria e cosméticos internacional e, quem sabe, também da moda. Tudo a ver com a artista, que vestia-se de Paul Poiret.
A redescoberta de Tarsila chama atenção para um fato básico sobre seu lugar na cultura nacional: o MASP, o melhor museu da América Latina e que abriga a exposição, não tem uma obra da artista em seu acervo permanente.
A atual gestão tenta suprir a lacuna: acaba de firmar um acordo de comodato para abrigar, por dez anos, obras de Tarsila e outros artistas modernistas do acervo do Banco Central.
Na foto acima, Autorretrato ou Le Manteau Rouge (1923), de Tarsila.