Prezada Ministra Cármen Lúcia:


Nenhum brasileiro nutre a quimera de que o Supremo Tribunal Federal seja uma casa de decisões puramente técnicas.

Como diria um psicanalista, este semblante não precisamos manter.  Essa fantasia podemos rasgar.

No dia a dia do Supremo, em inúmeros casos o pragmatismo sobre as potenciais consequências de uma decisão toma precedência sobre o que diz a letra fria da lei.

10365 81193f9c 6f02 0000 0058 ba94d8b5b866Em outros, a política de P minúsculo, as conveniências do dia e os acertos intramuros na Praça dos Três Poderes — com tudo que estes têm de menor e mais sinistro — torcem as maiorias do Supremo em direção a decisões sob medida, como um alfaiate da lei a serviço de um cliente cujo corpo é uma aberração.

Mas nenhuma decisão do Supremo da história recente — por seu conteúdo irresponsável, repercussões perversas e timing infeliz — fez mais para destruir a ideia de Justiça do que a decisão, sob medida, que ressuscitou temporariamente o corpo político putrefato do Senador Aécio Neves.

Seguindo a jurisprudência criada pelo Supremo, várias assembleias legislativas e câmaras de vereadores reinfectaram a sociedade com aqueles que, se ainda não podem ser chamados de culpados pois o rito judicial ainda tramita, vergam sob o peso de fartas evidências, processos cabeludos e uma folha corrida com um pé na Máfia e outro na Política.

No Rio de Janeiro, numa sessão marcada por arbitrariedades dentro da Assembleia e brutal repressão policial do lado de fora, a quadrilha do PMDB que arquitetou o assalto e o desmonte do Estado foi salva por 39 deputados com algo a temer.

Em poucos dias, o cemitério das reputações devolveu seus zumbis ao convívio dos brasileiros honestos  estes também quase mortos, por dentro, de desesperança e revolta.

A decisão do Supremo sabotou a República e inverteu valores que já se acreditavam invertidos ao máximo. Este é um País que não consegue tratar o esgoto de seus cidadãos mais vulneráveis, mas se esmera em aperfeiçoar as garantias constitucionais dos seus mais privilegiados.  Está claro qual dos dois esgotos é o pior.

O Brasil, com seu conhecido histórico de prender apenas os pretos, os pobres e as putas, não precisava refinar essa perversidade. 

Há três anos e meio, os brasileiros tentam construir para si um novo padrão ético. A Lava Jato trouxe à superfície o submundo da criminalidade política — correndo, no processo, o risco de desacreditar a própria ideia da Política como a única avenida possível de mediação social. Aquele era um risco calculado (até inevitável) que valia a pena correr para que a limpeza começasse.  

Mas ao decretar que o Judiciário não tem a palavra final para punir os crimes cometidos por membros do Poder Legislativo, o STF protege criminosos comuns e garante que a população se volte ainda mais contra a classe política (como se fosse possível). As consequências são nefastas no curto prazo, e imprevisíveis no longo.

A mais sagrada e necessária instituição de um País é a crença na Justiça.  Aécio Neves vale isso tudo?

A desculpa do Supremo é que o mandato eletivo é soberano. Portanto, caberia aos ‘representantes do povo’ a palavra final sobre a suspensão de um mandato legislativo ou uma penalidade imposta por um terceiro Poder. Na prática, deputados que são parte de esquemas de favorecimento e corrupção livram da cadeia os líderes estes esquemas.

Ministra Cármen Lúcia, a culpa pela existência de deputados bandidos é dos eleitores e de nosso sistema político, e este é outro debate que tem que ser enfrentado.

Mas, na decisão de 6 a 5 do Supremo, a senhora deu o voto de Minerva.  Esta bagunça é sua.  A senhora (e cinco de seus colegas) colocaram as conveniências de Brasília acima do imperativo de Justiça do Brasil.

Não apequene sua biografia.  Não se acovarde.  Limpe essa imoralidade antes que as forças do obscurantismo se alimentem deste erro e joguem o País numa escuridão ainda mais profunda.