Começou como uma disputa privada: a filha recorreu à justiça para impedir a mãe de dissipar o patrimônio familiar em “presentinhos” para o homem mais jovem que viera alegrar sua velhice.
Essa história mesquinha, que se repete em muitas famílias, ganhou atenção pública na França porque a viúva era a principal acionista da maior empresa de cosméticos do planeta, a L’Oréal.
Quando morreu em 2017, aos 94 anos, Liliane Bettencourt era, já havia décadas, a mulher mais rica do mundo, com uma fortuna na casa dos 30 bilhões de euros. Os obituários também lembraram seu envolvimento no escândalo que começou por sua ligação com o fotógrafo François-Marie Banier e acabou implicando Nicolas Sarkozy, presidente da França de 2007 a 2012.
Documentário em três episódios criado para a Netflix por Baptiste Etchegaray e Maxime Bonnet, A Bilionária, o Mordomo e o Namorado deve muito de seu encanto ao fascínio exercido pela riqueza colossal da protagonista. Ao longo da minissérie, números com até nove zeros enchem a tela, dimensionando a riqueza de Liliane – e o barraco nacional em que ela acabou se metendo.
No primeiro episódio, por exemplo, a cifra de um bilhão de euros é estampada sobre o rosto de Banier. Exagero: entre 1997 e 2007, o fotógrafo teria recebido apenas 917 milhões de Liliane. Parte desse montante veio na forma de obras de arte assinadas por modernistas como Picasso, Gris e Braque.
Liliane foi uma mulher solitária. Seu advogado, Georges Kiejman diz que ela nunca pôde expressar sua personalidade: “Depois de ser a filha do pai, ela foi a esposa do marido”.
O pai era o químico e empresário Eugène Schueller, fundador da L’Oréal. Filha única, Liliane herdou sua fortuna em 1957, quando Schueller morreu. O marido era o político André Bettencourt, que ocupou ministérios nos governos de Charles De Gaulle e Georges Pompidou. Homem distante e frio, nunca ofereceu à mulher a vida social que ela desejaria levar.
Banier agitou a mansão Bettencourt assim que chegou lá, em 1987. Vinha fazer um retrato de Liliane para uma revista. Os criados horrorizaram-se com o selvagem que urinou nas rosas do jardim, mas a dona da casa encantou-se com sua irreverência. Banier logo se tornou um acompanhante nas viagens internacionais de Liliane.
O título original do documentário é L’affaire Bettencourt – Scandale chez la femme plus riche du monde (O caso Bettencourt – Escândalo na casa da mulher mais rica do Mundo). A palavra “namorado” no título em português é chamativa mas nada precisa: Banier sempre foi abertamente gay. Liliane e o fotógrafo eram só “good friends”, na definição da artista Arielle Dombasle, amiga da família Bittencourt.
O bom amigo ganhou total acesso à mansão – e ao cofre – depois da morte de André Bettencourt, em 1995. Filha única da bilionária, Françoise Bettencourt Meyers resolveu defender sua herança: em 2008, abriu um processo contra Banier e tentou colocar a mãe judicialmente sob sua tutela.
A numerosa criadagem da mansão dividiu-se entre os partidos de Françoise e Banier. Pascal Bonnefoy, o mordomo do título, tomou o lado da filha. Na esperança de comprometer Banier, começou a registrar as conversas da patroa com um gravador escondido na mesinha na qual servia café e quitutes.
As gravações acabaram na mão de Françoise – e da imprensa. Banier, porém, quase não aparece nelas. Divulgadas pelo site Mediapart, as conversas eram, na sua maior parte, entre Liliane e o administrador de sua fortuna, Patrice de Maistre.
De Maistre articulava um grande esquema de evasão fiscal, orientando sua cliente a transferir recursos para paraísos fiscais. Descobriu-se até que Liliane era proprietária de uma ilha no arquipélago de Seychelles que nunca declarara à Receita.
O escândalo enredou o Palácio do Eliseu: De Maistre instava a bilionária a fazer doações de campanha ilegais para Sarkozy e Éric Woerth, ministro do presidente e tesoureiro de seu partido. Suspeita-se que o objetivo era ganhar favores fiscais. As revelações contribuíram para a derrota eleitoral de Sarkozy em 2012.
As gravações feitas pelo mordomo representam a espinha dorsal do documentário, que recorre a encenações para reproduzi-las – cenas filmadas de cima, como se um drone espionasse os diálogos escusos no escritório da bilionária. Patrice de Maistre é o único implicado no escândalo que concedeu entrevista.
Elegante, sinuoso, ele jura que sempre zelou só pelo interesse da cliente – embora as gravações sugiram que ele manipulava uma senhora confusa e senil. Acabou afastado de suas funções quando Françoise chegou a um acordo para tutelar a mãe, em 2010.
Uma crítica desdenhosa no Le Monde equiparou o documentário a uma soap opera. Injusto: o filme dá um panorama competente – e envolvente – do caso Bettencourt.
Seu melhor termo de comparação é outra série da Netflix: The Crown, a dramatização da carreira de Elizabeth II cujos episódios finais vão ao ar em dezembro. Resguardadas as diferenças entre ser coroada rainha da Inglaterra e herdar 30% das ações da L’Oréal, as duas protagonistas ocuparam postos de eminência que lhes vieram do nascimento, não de conquistas pessoais.
Cada uma a seu modo, elas conheceram a solidão que acompanha esse privilégio.