No mundo moderno, todos temos uma enorme propensão a nos tornar viciados, afirma a psiquiatra americana Anna Lembke, chefe da clínica de dependência química na Universidade Stanford.

Uma realidade de abastança e incessantes ofertas nos leva a perseguir (desenfreadamente) recompensas instantâneas para nossos desejos.

Para quem quer entender os mecanismos que regem esta busca frenética por felicidade, no entanto, cuidado: o livro mais recente de Lembke pode levar a uma ducha de água gelada. Explico já já.

Antes, vamos resumir o argumento principal de Lembke em poucas palavras: mais é menos, oferta é demanda, evitar é atrair, felicidade embute sofrimento – e vice-versa para tudo isso.

Nessa mesma linha de unificar opostos, o mais antigo livro de Lembke aqui no Brasil é o mais recente. Nação Dopamina explica por que a constante busca do prazer acaba levando à sua contrapartida, a dor

Graças a seu sucesso, a editora Vestígio lançou na sequência Nação Tarja Preta, que é na verdade o primeiro que ela escreveu, em 2016, e se refere à epidemia de opioides que assola os Estados Unidos desde a virada do milênio.

Em Nação Dopamina, ela trata do vício de forma mais abrangente – e inclusiva – misturando explicações científicas a casos de pacientes clínicos (e dela própria).

O tema não poderia ser mais atual. Vícios como a febre das apostas virtuais, a dependência do celular e das redes sociais, o poder do açúcar, a obsessão pelo sexo, as maratonas de séries por streaming – tudo começa com a dopamina, um neurotransmissor que nosso cérebro produz e está ligado ao prazer.

Nos anos 90 descobriu-se, porém, que a dopamina não atua tanto na gratificação, mas sim no desejo. Quer dizer: ela nos faz ansiar pelo que nos dará prazer. 

Camundongos geneticamente alterados, incapazes de produzir dopamina, pareciam continuar gostando de comida se ela fosse colocada em sua boca – mas não a buscavam.

Quanto mais dopamina uma droga libera no caminho de gratificação do cérebro, e quanto mais rápida é essa liberação, escreve a psiquiatra, maior seu poder de viciar. Por quê?

Porque no cérebro há uma espécie de balança entre prazer e dor, que anseia permanecer nivelada. Ao experimentar uma descarga de prazer, seu cérebro vai ativar mecanismos autorreguladores de… tristeza. 

Quando o prazer é muito intenso e muito frequente, diz Lembke, o organismo desenvolve tolerância; em pouco tempo o indivíduo vai precisar de uma quantidade maior da substância para sentir o mesmo efeito.

O pulo do gato do livro é estender essa conclusão a outros hábitos modernos. 

O celular, vídeos de 15 segundos na internet, séries, masturbação e pornografia, romances baratos, quase qualquer coisa capaz de formar hábito é tratada por Lembke como um potencial mecanismo de fuga que pode ser encarado como uma droga.

As soluções que ela propõe se baseiam em outra descoberta recente da neurociência: que o cérebro processa sensações de prazer e dor na mesma região. Ela sugere, então, que os dois polos estão muito mais ligados do que tradicionalmente se pensava.

E é aí que entra a ducha de água gelada do início do texto. Um dos experimentos citados por Lembke indica que o desconforto provocado por um mergulho de uma hora em água bem fria faz com que um pouco depois a concentração de dopamina aumente 250%.

Submetido a uma sensação ruim, infere ela, o corpo reage aumentando sua capacidade de produzir prazer. “Assim como a dor é o preço que pagamos pelo prazer, o prazer também é nossa recompensa pela dor,” escreve.

Lembke obviamente recomenda cautela na administração da dor. Minhocas expostas a temperaturas um pouco acima da que estão acostumadas viveram mais (em um experimento); mas se a exposição durar muito, o efeito é revertido e elas morrem mais cedo.

No final das contas, sua receita para os males modernos não difere muito da recomendação dos conservadores: abstinência, autocontrole e algo que não está muito na moda hoje em dia: admitir-se responsável pelos seus atos, e não retratar-se como vítima.

Não é uma receita ruim, como demonstra o sucesso dos Alcoólicos Anônimos, de quem ela tira algumas lições.

Para a maioria dos vícios modernos mais espraiados, porém, Lembke reconhece que não é possível adotar a estratégia de afastar-se completamente. Quem pode viver sem celular?

Até exercícios, uma prática saudável, podem ser viciantes. e não faria sentido abrir mão deles. A resposta é uma série de estratagemas como o autocomprometimento – criar de forma espontânea barreiras entre si mesmo e a droga de sua escolha.

Esta barreira pode ser cronológica (“só vou ler mensagens duas vezes por dia”, ou “vou praticar o jejum intermitente”) ou, em casos mais drásticos, pode ser categórica.

Um dos pacientes de Lembke, viciado em apostas, parou de assistir esportes na TV, ler notícias esportivas, escutar transmissões de partidas pelo rádio, e pediu a todos os cassinos da região para colocá-lo na lista de “não admitidos”.

Em síntese, diz Lembke, “a busca incessante do prazer (e a fuga do sofrimento) leva ao sofrimento”, e a recuperação começa com a abstinência, que “reconfigura o circuito de gratificação do cérebro e, com ele, nossa capacidade de sentir alegria nos prazeres mais simples”. As recomendações fazem sentido… mas estarão certas?

Lembke enfrentou dois tipos de crítica. O primeiro é dos que enxergam em suas recomendações uma agenda política, de direita, que culpa os viciados por males intrínsecos ao sistema. Não vale a pena discutir esta posição. 

Mas o segundo tipo de crítica, sim. Ela vem de outros cientistas que apontam conclusões um pouco apressadas no livro. Não é provado, por exemplo, que videogame ou pornografia provoquem no cérebro o fenômeno da tolerância da mesma forma que as drogas. Em comparação com as drogas, os males modernos (mídia social, junk food, séries de TV etc.) liberam uma quantidade muito menor de dopamina.

“Dar uma pausa nos videogames ou nas redes sociais pode ser uma boa ideia,” disse Vijay Namboodiri, professor assistente de neurologia na Universidade da Califórnia em São Francisco, ao The New York Times. “Mas não é porque você precisa reconfigurar o seu sistema de dopamina.”

Talvez o livro seja de fato um pouco exagerado. O percentual de pessoas que não conseguem controlar a busca de prazeres no dia a dia não justifica considerarmos uma “nação dopamina”.

Mas que todos nós precisamos estar alertas contra o abuso, isso é difícil negar. Se você sair da leitura com uma boa “noção dopamina”, já valeu a pena.