Samuel Pessôa não tem dúvida: se o Brasil não agir agora para conter a trajetória da dívida pública, traremos de volta o espectro da inflação elevada.
“Não vai ser este ano nem ano que vem, mas daqui a três anos — e três anos passam muito rápido.”
Ou seja, a volta da velha senhora (que o mundo julga morta e enterrada) coincidiria com a próxima eleição presidencial.
A trajetória atual aponta para uma dívida de 100% do PIB até 2022.
Samuel considera “péssimo” qualquer tributo da natureza da CPMF, mas aceitaria se fosse essencial para evitar uma espiral inflacionária.
Ao participar da Expert XP ontem, o ministro Paulo Guedes voltou a defender um imposto sobre transações digitais, apesar de negar que seja uma nova CPMF.
Abaixo, a conversa do pesquisador do Ibre-FGV e da Julius Baer Family Office com o Brazil Journal.
CPMF é um imposto bom ou ruim?
É um imposto muito ruim. É um imposto em cascata, que distorce muito a decisão de produção.
Quais os efeitos mais negativos da CPMF?
A CPMF desestimula a troca mercantil, porque é um imposto sobre transação. Numa economia de mercado, há uma série de transações que são feitas no mercado, você vai lá e compra. Mas há também uma série de transações que são feitas numa estrutura organizacional que a gente chama de empresa. Por que as firmas existem? Porque não é eficiente comprar no mercado tudo o que eu quero o tempo todo. Tem custos de transação. Algumas atividades é melhor que sejam internalizadas dentro de uma estrutura que a gente chama de empresa. A CPMF muda esse cálculo. Um monte de coisas que seria mais eficiente eu fazer no mercado, eu vou passar a fazer dentro da minha empresa. Ela cria um desvio entre a eficiência tecnológica de uma decisão de produção e o retorno privado dessa mesma decisão.
Ou seja, em várias situações em que uma empresa poderia operar com prestadores de serviços, terceirizados, fornecedores, ela adota uma solução in-house para reduzir seus custos de transação?
Exatamente. Você estimula verticalizações excessivas, reduz a competitividade e a competição na economia. As estruturas começam a ficar maiores. Esse é um lado. Em outro lado, você estimula as pessoas a usar outros meios de pagamentos.
Dinheiro em espécie?
Não só dinheiro em espécie. Antigamente as pessoas endossavam cheques. Ficavam pagando contas com cheques endossados.
Mesmo com os meios de pagamento digitais tão avançados, poderia haver a volta do cheque endossado?
O risco há. O difícil é a gente saber o tamanho. A CPMF é um imposto que vai contra os princípios de política tributária ótima. A CPMF é muito ruim, mas certamente muito pior do que CPMF é inflação. Costumo dizer o seguinte, se você for ordenar: guerra civil é péssimo, é a pior coisa de todas. Depois, você tem inflação. E depois as maneiras civilizadas de tributar. CPMF é péssimo, é um imposto invisível. A gente tem que caminhar na direção de reformas que elevem a visibilidade de impostos.
Vai para o preço, mas o consumidor não vê.
Exato. Agora, certamente CPMF é muito melhor do que inflação.
Por que essa menção à inflação? Há o risco de a deterioração das contas públicas descambar para inflação?
A gente certamente vive uma situação fiscal limite, extrema. Não é a curto prazo, porque a inflação está muito baixa, a economia está muito fraca, o desemprego está muito alto. Então não existe o risco de inflação a curto prazo. Mas certamente inflação não é uma coisa resolvida no Brasil. Isso vale para o Brasil e para a América Latina. É só olhar para a Argentina e a Venezuela. Inflação é algo que existe no mundo e mais fortemente na América Latina. A preocupação com a inflação é permanente.
Se a gente estiver numa situação fiscal extrema e o remédio for a CPMF, eu acho melhor do que ter inflação.
Não seria melhor uma ampla reforma tributária do que ressuscitar a CPMF?
Eu gosto muito do projeto do deputado Baleia Rossi [MDB-SP], a PEC 45. Ela unifica os tributos e gera ganhos de eficiência. Mas precisamos ver como ficará a questão fiscal, como vamos tratar a evolução do gasto público. Há outras reformas, como o Imposto de Renda, a pejotização, o Simples. Eu não começaria a atacar esse problema pela CPMF.
Agora, eu não tenho uma questão ideológica contra a CPMF. Acho a CPMF muito ruim, eu prefiro um monte de outras coisas. Mas se o equilíbrio for via CPMF, tudo bem. Acho muito melhor do que inflação.
Por que toda essa preocupação com a inflação se ela está nos menores níveis históricos?
Porque a dívida está muito grande. Quando a dívida está muito grande, o mercado fica com medo de um calote. E aí o prêmio de duration aumenta. Aí o que o Tesouro corretamente faz? O Tesouro encurta a dívida. Vence uma dívida longa, ele não consegue renovar no mesmo prazo.
Se não terá que pagar um prêmio muito alto.
Exato. Então o que ocorre? Conforme a dívida vai crescendo sem controle, o que é o nosso caso, simultaneamente ocorre uma redução do prazo médio da dívida. Quando você tem uma dívida muito grande e de prazo médio de vencimento muito baixo, a política monetária começa a ficar pouco eficaz. Quando você aumenta os juros, você quer desestimular a demanda. Tem uma série de efeitos contracionistas quando você sobe a Selic, mas tem um efeito expansionista, que é muito pequeno em condições normais, que é o efeito renda. Mas quando o volume da dívida é muito elevado e o prazo é curto, esse efeito renda vai ficando cada vez maior. Uma parte da dívida é pós-fixada. Então todo mundo que tem títulos pós-fixados tem mais renda quando você sobe os juros. Ou seja, vão querer consumir mais, pois têm mais renda.
Além disso, se você subir os juros durante um ano, e o prazo médio de renovação da dívida for muito baixo, vai vencer um monte de dívida que vai ser renovada a partir dos juros mais altos, aí você começa a remunerar um monte de gente a taxas maiores de juros.
E com o efeito colateral de provocar um aumento cada vez maior da dívida pública…
Exatamente. Aí, nessa hora, a única forma de combater a inflação é fazer um superávit primário muito alto, uma política fiscal muito contracionista.
O senhor vê um risco real hoje de descontrole inflacionário?
Claro que eu vejo. Eu não vejo esse ano. Nem ano que vem. Mas daqui a três anos eu vejo. E três anos passam muito rápido. O risco é real.
A Argentina tem inflação de 50% ao ano. Por que a gente não pode ter? Por que nós somos muito melhores do que eles?
O ministro Paulo Guedes tem razão ao trazer a discussão da CPMF de volta?
É muito difícil dizer se o ministro tem razão ou não. Ele está lá, tendo que formular, lidar com o dia a dia da política econômica, com as restrições reais. Eu não me sinto nem um pouco confortável em julgá-lo. Se ele está fazendo isso, é o que dá para fazer. O que a gente pode dizer à distância é que CPMF é um imposto péssimo.
O erro do governo não seria se contentar com uma reforma tributária modesta em vez de lutar para algo mais amplo?
Não é bem assim. Tem uma agenda que é a reforma tributária para aumentar a eficiência, que é a discussão sobre a criação de imposto de valor adicionado. Isso não tem nada a ver com CPMF. Nada a ver. CPMF é uma agenda de gasto público. A gente não vai conseguir cortar o gasto público. Nós não vamos fazer um superávit primário. Então a gente vai fazer um remendo horroroso, que é criar um imposto muito ruim, para evitar que a dívida estoure. E isso não tem nada a ver com PEC 45, PEC 110. Isso é outra agenda. O que estamos discutindo aqui é gasto público. Aí há a incapacidade do Congresso em cortar gasto público. Então a dívida vai explodir e teremos inflação de volta. Para isso não acontecer, é melhor ter a CPMF.
O discurso do governo é ter a CPMF para custear a desoneração da folha.
Aí sou totalmente contra. Sou contra e o ministro está errado.
Por quê?
Porque a CPMF é um péssimo imposto. Desonerar a folha é uma boa medida. Então vamos fazer uma boa reforma tributária, vamos botar o país para crescer e procurar uma base tributária saudável. Agora, criar a CPMF e desonerar a folha é vestir um santo e vestir o outro. Então não desonera a folha. Aí eu discordo totalmente do ministro.
Ou seja, não deve misturar CPMF com desoneração da folha? Que a desoneração da folha seja tratada na reforma tributária, certo?
Quase isso. Que a desoneração da folha seja tratada numa ampla reforma do Imposto de Renda, não tem nada a ver com o IVA. O que eu acho que seria razoável? Desonera a folha até um salário mínimo, para estimular a contratação de trabalhadores de baixa produtividade. Para estimular o trabalho é bom. E desonera a folha da contribuição patronal no que exceder o teto da Previdência. Para tirar o benefício cruzado, pois uma pessoa que ganha R$ 40 mil pela CLT, ela contribui pelos R$ 40 mil, mas se beneficia somente até o teto da Previdência, que é muito menor do que R$ 40 mil. Desonera o que exceder o teto, mas aí vai faltar dinheiro para o sistema previdenciário. Então você compensa não com CPMF, que é um imposto horroroso. Você compensa com [maior tributação sobre] Simples e pejotinha [pessoas físicas contratadas como pessoas jurídicas].
Você passa a tributar a renda das físicas que recebem como PJ, isto é, tributar lucros e dividendos, certo?
Isso. E também faria outra coisa. Imposto de Renda da Pessoa Jurídica, mais CSLL, dá 34%. Se for setor financeiro, 45%. Mas quando você olha o imposto efetivamente pago, ele é menor, porque tem isenções, tem algumas possibilidades de planejamento tributário. Então há uma outra agenda legislativa, que é reduzir as possibilidades da tributação média do IR das pessoas jurídicas ser menor do que a tributação legal. Então há três fontes para gerar receita e compensar a desoneração da folha, que é tributar mais o Simples, tributar mais PJ e fechar as possibilidades de planejamento tributário das empresas que operam lucro real.