Há três décadas, o livro Inteligência Emocional, do psicólogo americano Daniel Goleman, popularizou um campo de estudos então incipiente e contribuiu para o avanço de uma mentalidade que hoje parece óbvia: saber lidar com os sentimentos torna os profissionais mais eficientes.

Ao longo dos anos, a inteligência emocional, ou IE – também chamada de QE, quociente emocional, em analogia ao quociente intelectual – se tornou uma habilidade imprescindível. Algumas pesquisas apontam que ela é o maior previsor de desempenho futuro (com maior grau de acerto do que a análise do QI) em várias áreas de atuação.

Segundo esses trabalhos, profissionais com mais IE são mais propensos a manter a calma sob pressão, resolver conflitos, liderar com eficiência e criar bons ambientes de trabalho (produzindo maior engajamento e menor rotatividade de funcionários).

Tem mais. Pessoas com mais inteligência emocional em geral constroem relacionamentos mais fortes, sofrem menos problemas físicos e mentais… e ainda por cima conseguem manter foco e disciplina com mais facilidade, com reflexos positivos na capacidade cognitiva. 

Daniel Goleman

“O QI ajuda muito nos estágios iniciais da carreira. Mas depois quem se destaca é quem tem mais inteligência emocional,” Goleman disse numa palestra durante o Arco Day, um evento que a Arco Educação organizou recentemente em São Paulo.

Há uma certa dificuldade em estabelecer exatamente o que significa o conceito de inteligência emocional – mas em sua essência, trata-se de reconhecer, compreender e administrar emoções (tanto as próprias como as dos outros). 

A importância disso é tão evidente que não deveria ser preciso debatê-la. Em seu Samba da Bênção, Vinicius de Moraes já ensinava que “é melhor ser alegre que ser triste”, mas o poeta poderia acrescentar que é melhor ser calmo que nervoso, simpático que antipático, e por aí vai.

“O problema é que o nosso cérebro é sequestrado,” disse Goleman. “O sistema mais primitivo do cérebro, localizado na amígdala, responsável pelas respostas rápidas e instintivas, toma o controle quando se sente ameaçado.” E as ameaças, hoje em dia, são simbólicas. 

Em geral, a reação surge quando a pessoa se sente desrespeitada, ignorada ou vítima de injustiça. Para nos proteger, Goleman defende os programas de aprendizado sócio emocional (SEL, da sigla em inglês), que têm avançado paulatinamente em dois campos principais: nas empresas e nas escolas.

“Trazer o Goleman para o nosso evento nos ajuda a levar a importância do desenvolvimento da inteligência emocional para cada sala de aula de nossas escolas parceiras,” disse Ari de Sá Neto, o fundador e CEO da Arco Educação, que trabalha com mais de 10.000 escolas.  

A seguir, a conversa de Goleman com o Brazil Journal:

No livro O Erro de Descartes, o neurocientista António Damásio mostrou que as emoções exercem um papel fundamental na racionalidade. Existem mesmo dois campos tão distintos, a inteligência emocional e a inteligência racional?

Eu colocaria de outra forma. As emoções permitem que as pessoas expressem ou desempenhem a cognição em seu melhor nível. Quanto mais fortes as suas emoções negativas, menor a sua habilidade cognitiva; quanto mais calmo e claro você for, melhor a sua habilidade cognitiva.

Críticos dizem que a inteligência emocional é bem mais difícil de medir e é um conceito muito mais nebuloso do que o quociente intelectual. Como saber se alguém tem um bom nível de inteligência emocional?

O QI tende a ser mais ou menos fixo ao longo da vida, enquanto a inteligência emocional é mutável. Ela pode ser aprendida e aprimorada em qualquer ponto da vida.

O conceito de IE foi proposto em 1990, por Peter Salovey, que hoje é o presidente da Universidade Yale, e um estudante de graduação, John Mayer. Como você aponta, é muito mais difícil de medir. Mas há hoje uma dúzia ou mais de modelos sobre o que significa inteligência emocional.

Eu, por exemplo, desenvolvi um método que chamo de inventário de competências socioemocionais. Ele avalia comportamentos específicos que indicam traços de inteligência emocional, apontados por pessoas que lhe conhecem bem. Ao medir o quociente emocional, não é conveniente se basear nas respostas da própria pessoa. Porque ela pode ter pontos cegos sobre seu comportamento. Por isso sou a favor de uma avaliação 360º, feita por pessoas que você escolhe. A avaliação delas é anônima, para que se sintam livres para falar. E aí você recebe um perfil.

Um perfil, não um grau?

A IE não é uma coisa só. No meu modelo há 12 competências. Coisas como ser capaz de administrar emoções turbulentas, ou ser capaz de manter o foco em um objetivo apesar das distrações.

Isso significa que há vários tipos de IE?

Não vejo assim. Acho que IE é um modelo de quatro partes: percepção das próprias emoções, autogestão, percepção social e gestão dos relacionamentos. Cada uma das 12 competências é dependente de uma dessas quatro partes.

Esse perfil é individual? Como se pode separar o indivíduo do contexto em que ele vive?

Você está certo, acho que é uma interação entre o indivíduo e a cultura em que ele opera, ou a equipe em que está – os times têm normas, sejam implícitas ou explícitas, sobre como as pessoas se relacionam umas com as outras. Cada local de trabalho tem suas próprias normas de interação. Cada cultura é diferente.

Você fala bastante da importância de ensinar IE às crianças. Mas há crianças vítimas de abuso em casa, ou que vivem em locais inseguros… As ferramentas de IE têm efeito nesses casos?

O abuso cria uma grande desconfiança nas pessoas. Elas acham muito difícil se sentir seguras com qualquer um. Então eu diria que o primeiro trabalho de um professor de alguém nessa situação é criar o sentimento de uma classe segura. Em algum nível, a classe é quase terapêutica para a criança. 

Como fazer isso?

Eu visitei uma escola de crianças de 6 anos de idade em New Haven, em Connecticut. É uma comunidade com muita gente desempregada; eles costumavam ter 20 mil empregos industriais lá, agora não têm quase nenhum. Várias crianças sofriam abusos. E os professores tinham uma prática no início de cada aula. As crianças sentavam em círculo e diziam como estavam se sentindo e por quê. Isso cria percepção das próprias emoções: quais são os seus sentimentos e o que faz você se sentir assim.

O SEL (Social Emotional Learning) pode ajudar no desenvolvimento do cérebro das crianças, que passa por grandes mudanças nessa idade. É o suficiente para lidar com as desvantagens de algumas crianças? Acho que ajuda. Não sei até que ponto, mas é melhor do que simplesmente continuar com o padrão abusivo.

Quais são as ferramentas para se aumentar o QE?

Existem muitas organizações com currículos bem desenvolvidos. Mais de cem hoje em dia, uma dúzia no Brasil. A Arco tem um modelo. E todos vão ensinar autopercepção, autocontrole, empatia, se dar bem com outras crianças. Você ensina as mesmas coisas, de modo diferente para as diversas idades. Mas ensina o espectro inteiro: autopercepção, como lidar com as emoções…

Voltando às empresas… se o QE faz tanta diferença, devo contratar gente com alta inteligência emocional?

Minha inclinação seria contratar pessoas competentes para o trabalho que você precisa e ensiná-las IE. Conforme a necessidade.

É assim tão rápido o processo de mudar uma pessoa?

Se você aplicar programas bem desenhados, sim. Porém, muitos não são. Várias companhias vão dizer: vá assistir a palestra daquele sujeito; faça este curso de duas horas sobre conversas difíceis; vamos fazer esse retiro de um dia. Nada disso funciona de verdade. Porque é como desenvolver qualquer habilidade: só se aprende praticando.

De que modo o investimento em IE é diferente de criar uma boa cultura para a sua companhia?

A IE é um processo mais individualizado. A empresa precisa oferecê-la para quem de fato quiser. Aí você recebe o seu perfil, junto com o seu coach. E decide em que ponto vai buscar melhorias. Você não tenta fazer tudo de uma vez só. Trabalha um aspecto de cada vez.

Se a IE é mutável, você também pode perder os avanços?

Tenho colegas que afirmam que, praticando por alguns meses, aquilo vira um hábito. Você já leu o livro do [Charles] Duhigg [O Poder do Hábito]? Hábitos se alojam em uma parte diferente do cérebro. Uma vez que isso acontece, é muito difícil perder.

Você escreveu o primeiro livro sobre este tema há 29 anos. Como foi o seu próprio processo de treinar sua IE?

Eu nunca disse que tenho IE. Sou um jornalista, eu escrevo sobre isso.

Tendo escrito tanto sobre o assunto, vai me dizer que a sua inteligência emocional não evoluiu?

Sabe, esta é uma pergunta que é melhor você fazer para a minha mulher.