A premissa básica do funcionamento do mercado de ações é de que todas as ordens de compra e venda são tratadas sem favorecimento: são organizadas pelo melhor preço e por ordem de chegada. Ganha o investidor que fizer a aposta certa, e a fizer primeiro.

Acreditar nisso hoje é acreditar em Papai Noel, diz “Flash Boys”, o novo livro de Michael Lewis, um consagrado cronista dos cada vez mais criativos (e vexaminosos) pecados de Wall Street. Há algum tempo que os mercados não funcionam mais assim, Lewis defende no livro.
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Em 2008, três dias antes de largar seu emprego no Goldman Sachs, o programador russo naturalizado americano Sergey Aleynikov começou a enviar emails do trabalho para uma conta pessoal sua. Os emails continham 32 megabytes de programas complexos, de propriedade da Goldman, que permitiam ao banco operar na Bolsa em “alta frequência”, passando na frente de outros investidores por nanossegundos na hora de comprar ou vender ações.

Dias depois, Sergey estava na cadeia, detido pelo FBI. Os promotores disseram ao juiz que os códigos que Sergey roubara da Goldman poderiam ser usados para manipular os mercados “se caíssem nas mãos erradas”.

Cético de que as “mãos certas” para esse software seriam as da Goldman, Michael Lewis começou a investigar o assunto e descobriu que a negociação de ações em alta frequência (“high frequency trading”, ou HFT) já havia se tornado realidade, apesar de pouca gente — mesmo em Wall Street — entender como funcionava. Estima-se que, hoje, cerca de 60% do volume negociado na Bolsa de Nova Iorque seja transacionado por operadores em firmas de alta frequência.

O “high frequency trading” é o filho rebelde (senão indesejado) do casamento da tecnologia com a matemática. Antes de “Flash Boys”, quem não era da área de TI ficava até com medo de pensar no assunto por achá-lo complexo. Mas trata-se, na verdade, de algo bem mais simples e antigo:  um lado tirando vantagem do outro por meio de uma esperteza sofisticada. Quase um almoço grátis.

Os grandes gestores de ações nos EUA começaram a sentir que havia algo de errado com o mercado em 2008. Antes, qualquer um deles podia comprar, digamos, 50.000 ações da Microsoft a US$ 40,00. Bastava apertar um botão no computador ao ver aquele lote sendo ofertado naquele preço, e pronto: a compra estava feita. De 2008 para cá, o mercado mudou. Agora, ao apertar o botão para executar a ordem a US$ 40,00, muitas vezes o gestor só consegue levar, digamos, 1.000 ações. É como se as outras 49.000 desaparecessem misteriosamente… exceto pelo fato de elas agora aparecerem na tela, reofertadas a US$ 40,01. Se o gestor ainda quiser o lote, terá que pagar mais caro.

Quem conseguiu levar as 49.000 ações, passando na frente do gestor? Os operadores de alta frequência: firmas que investiram em infraestrutura, programadores e tecnologia para ganhar mais velocidade (um nanossegundo que seja) e passar na frente dos gestores da PIMCO, da BlackRock e da Fidelity, que administram as carteiras e os fundos de aposentadoria do americano médio e da proverbial velhinha do Kansas.

“Você analisa o papel, gasta tempo e faz o seu trabalho. Os HFTs identificam sua ordem e compram junto,” diz um grande gestor brasileiro. “É uma espécie de parasitismo. Eles não produzem nada e tentam se apropriar. É gente muito capaz, mas com produtividade negativa.”

Como eles conseguem isso? Os exemplos são quase inacreditáveis: uma empresa de telecom que presta serviços a operadores de alta frequência investiu US$ 300 milhões em 2010 para deitar um cabo de fibra óptica em linha reta entre a Bolsa de Nova Iorque e a de Chicago para ganhar os nanossegundos preciosos. Outras firmas colocam seus servidores em prédios fisicamente próximos dos servidores das Bolsas, ou até dentro delas, pagando aluguel por isso.

Talvez alguns vejam no “high frequency trading” traços de uma “destruição criadora”, a ideia defendida pelo economista austríaco Joseph Schumpeter de que, no capitalismo, a inovação desloca e destrói as velhas empresas, fazendo com que o mundo todo fique mais eficiente por isso. Infelizmente, não me parece que haja algo de schumpeteriano nos “Flash Boys”. Os mercados não ficaram “mais eficientes” por causa dos HFTs: ficaram menos íntegros e mais voláteis. A propósito: os derivativos, inovações financeiras reverenciadas nos anos 90, provaram-se intelectualmente intrigantes (ver GREENSPAN, Alan) mas também “armas financeiras de destruição em massa” (ver BUFFETT, Warren).

No Brasil, os HFTs não encontram terreno fértil. “Essa situação só ocorre em mercados fragmentados como os EUA, onde há cerca de 50 ambientes de negociação diferentes (várias bolsas),” diz Edemir Pinto, diretor-presidente da BM&F Bovespa. “No Brasil, só há um ambiente (a própria BM&F), então essa disputa – essa arbitragem entre mercados – não ocorre.”

“Se você me perguntar se isso faz bem para o mercado, eu diria que não, que é injusto, e que a estrutura de mercado nos EUA tem que ser alterada,” diz Cicero Vieira, o diretor de operações da BM&F Bovespa.

“Flash Boys” é, na essência, mais uma crônica sobre alguns em Wall Street metendo os pés pelas mãos. O livro, lançado dia 31 de março, reacendeu o debate sobre os HFTs e provavelmente vai levar os reguladores do mercado americano e o Congresso a se interessarem pelo assunto. Se e quando a atividade for proibida (ou tão regulada a ponto de se tornar inviável), alguns terão enriquecido muito, mas a imagem do mercado enquanto instituição fundamental do capitalismo já terá sofrido mais um golpe.

Isso remete a Jorge Benjor: “Se malandro soubesse como é bom ser honesto/Seria honesto só por malandragem, caramba”.