Othon Bastos queria ser dentista. Que bom que desistiu. Mesmo no começo de suas investidas nos palcos, o grande ator baiano tentava fugir da vocação – e garantia ao diretor Paschoal Carlos Magno (1906-1980) que seu futuro seria no ramo da odontologia.
Talvez a negação viesse de um trauma.
Em uma aula de literatura, aos 11 anos, o garoto desagradou a professora Eliete ao fugir da declamação típica de um poema parnasiano. Preferiu apenas ler, sem saber que colocava em prática um dos princípios do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), que desprezava o esforço de um intérprete em se mostrar como personagem. “Você pode fazer qualquer coisa da vida, menos arte,” repreendeu a mestra, em sala de aula.
Pouco tempo depois, em uma sessão espírita, Othon ouviu de um médium uma vaga previsão sobre seu destino profissional. “Você vai ficar andando de um lado para o outro e falando pelos cotovelos,” avisou a entidade. O jovem ficou perplexo, sem entender nada. “O que será isso?” indagou para si mesmo.
Histórias curiosas como estas permeiam o espetáculo Não me Entrego, Não!, uma espécie de biografia cênica escrita e dirigida por Flávio Marinho, que cumpre desde junho uma concorrida temporada no Teatro Vanucci, no Rio de Janeiro.
As longas filas no corredor do Shopping da Gávea atestam que, entre a maioria de cabelos brancos, jovens também se interessam em ouvir as experiências do artista consagrado nos palcos e nas telas em sete décadas de carreira.
Ator que sempre pregou a coletividade, Othon enfrenta pela primeira vez um monólogo. Mesmo assim, não está sozinho: junto dele existe a participação – fundamental – da atriz e diretora-assistente Juliana Medella, que, atrás de uma mesa no lado esquerdo do palco, representa a memória do artista.
Em uma solução criativa, ela personifica o que seria o ponto – recurso comum em outros tempos para soprar o texto ao ator durante a sessão – e dá as deixas ou até frases inteiras para o veterano que, por vezes, vê as lembranças se embaralharem.
Se além deste apoio Othon também usa um ponto eletrônico atrás da orelha para ouvir o longo texto, o que é provável, pouco importa. Afinal, o público entra no teatro para ser ludibriado e, em pouco tempo, o protagonista conquista a reverência de todos.
Pelo menos dois momentos de Não me Entrego, Não! saltam com brilhantismo da mera contação de causos para o caráter de uma encenação respeitável.
No primeiro deles, Othon recorda a carona de jipe que pegou com Glauber Rocha (1939-1981) para começar as filmagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol, em 1963. No trajeto entre Salvador e o sertão baiano, ele repassou o roteiro e deu sugestões que, pelo visto, foram fundamentais e transformaram a visão do diretor em relação à sua obra.
O palco na penumbra, uma cadeira sob o foco de luz e o ator se sacolejando como se atravessasse uma estrada de terra colaboram para o espectador se sentir testemunha daquele encontro de gênios. Aliás, vem de uma citação do cangaceiro Corisco, seu personagem no longa, o título da peça.
Em outra passagem, Othon revive um de seus espetáculos mais marcantes, Um Grito Parado no Ar, dirigido por Fernando Peixoto (1937-2012) em 1973, época ferrenha da ditadura militar. O drama de Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), repleto de metáforas, furou o bloqueio da censura, e, mais de cinco décadas depois, Bastos volta a interpretar o personagem Augusto. Com uma voz forte para sua idade, expressa uma indignação ressignificada em falas como, por exemplo, “estão todos com alergia de viver!”
São dessas viagens ao tempo que se faz o encanto e o caráter quase mágico de Não me Entrego, Não!. A encenação é de uma simplicidade pueril; o texto, totalmente cronológico, não tem qualquer ousadia estilística, e o cenário é uma colagem de fotos.
Os trabalhos do artista na televisão são solenemente ignorados – aliás, uma reafirmação do preconceito de sua geração com o veículo, e mesmo o cinema que o redimensionou não deixa de ser abordado com certa mágoa no decorrer da peça.
Othon lamenta que, nas últimas décadas, virou um coadjuvante de luxo nos filmes Central do Brasil (1998) e Bicho de Sete Cabeças (2001), e esbarra na vaidade ao valorizar o protagonismo de O Paciente – O Caso Tancredo Neves, dirigido por Sérgio Rezende em 2018, em que viveu o presidente morto antes de assumir o cargo.
É emocionante, entretanto, a oportunidade de vê-lo e ouvi-lo, ainda vigoroso e com potência dramática, interpretando trechos de montagens históricas, como a citada Um Grito Parado no Ar e O Jardim das Cerejeiras, do russo Anton Tchekhov, dirigida por Paulo Mamede em 1989. “Eu comprei o jardim!”, grita ele, intenso, na pele do emergente que fatura a propriedade dos antigos patrões.
Com o perdão do clichê, o teatro é a arte do efêmero. Se você deixou escapar aquela peça, por mais que se possa acessar registros da época, o impacto jamais chegará perto do real.
Othon Bastos desafia a si mesmo e, mais uma vez, ludibria o público dando a chance de revê-lo em trechos de antigos trabalhos. Pode não ser o mesmo intérprete das décadas de 70 ou 80, mas, na ilusão do espetáculo, ninguém fica indiferente.
Em uma temporada dominada por veteranos como Fernanda Montenegro, Nathália Timberg, Marco Nanini e Irene Ravache, o célebre artista da resistência, aos 91 anos, parece longe de se entregar.
Mesmo sem patrocínio algum, o que ironiza em cena, Othon Bastos volta à atitude de guerrilha e lota o teatro, cacifado pela energia que, felizmente, desviou da odontologia para emocionar o público nos palcos e nas telas.