Aos sete ou oito anos, Júlia Tricate fez seu primeiro jantar solo para receber duas de suas professoras preferidas da escola em casa. Sua mãe a ajudou apenas com as compras dos ingredientes.
À essa época, embora já tivesse a convicção de que queria ser cozinheira, não poderia supor que aos 30 anos seria uma chef e restauratrice com quatro empreendimentos de sucesso em São Paulo, que juntos recebem 12 mil clientes por mês e têm 80 funcionários.
Júlia é sócia do marido, o chef e restaurateur Gabriel Coelho, cujo trabalho é complementar ao dela. Ele, mais inquieto e veemente; ela, mais pé no chão e metódica.
Juntos, decolaram com o De Segunda, um restaurante no Itaim no qual ambos exercem liberdade criativa na cozinha, em preparos empratados com estética. O De Primeira veio em seguida, um “boteco vintage” na Vila Madalena, descomplicado, com alma carioca, mineira e interiorana.
Do outro lado da rua, bem em frente, o Quintal De Primeira faz referência ao imaginário do churrasco no quintal de casa aos fins de semana, com churrasqueira a carvão; um quarteirão adiante, o Santokki nasce por último, inspirado nos churrascos coreanos do Bom Retiro que Júlia e Gabriel gostam de frequentar, mas com uma proposta fora da caixa, com os traços de ousadia que caracterizam o trabalho do casal.
Júlia confessa um clichê: seu amor pela cozinha emergiu cedo, na barra da saia da avó, que cozinhava para a família, em ocasiões especiais, pratos como galinha ao molho pardo e arroz de pato com castanha-de-caju. No cotidiano, no entanto, a avó trabalhava muito – era coordenadora nacional da Unesco – e passava longe da cozinha.
Hoje, ao fazer um sobrevoo pela história de Júlia – filha de donos de uma escola enorme e tradicional da zona Sul de São Paulo, formada em nutrição e gastronomia – é fácil compreender seu tino para os negócios. Desde pequena, encantava-se mais com o planejamento dos encontros familiares à mesa do que com o próprio ato de cozinhar.
“Eu era ajudante da minha avó em tudo. Acho que gostava mais do ritual do que da festa em si. A gente pensava no cardápio, em como iam ser todos os detalhes, íamos fazer as compras e depois começávamos a cozinhar,” diz a chef, que hoje anda mais concentrada nos bastidores de seus restaurantes, mas sente falta da barriga no fogão.
No fogão, aliás, ela e o marido já criaram pratos que revelam o âmago dessa cozinha livre e autoral, fincada, vez ou outra, em alguns símbolos tradicionais. A cenoura ao curry do De Segunda, por exemplo, é uma expressão do esforço para esgotar as possibilidades de um mesmo ingrediente e evitar desperdício.
“Nossa ideia é usar a cenoura de vários jeitos,” Júlia disse ao Brazil Journal. “Esse prato tem o curry tailandês com gengibre, cenoura e leite de coco, que é mais denso e apimentado; uma cenoura na brasa; um tempurá de folha de cenoura com um sorvete de iogurte. É um prato que envolve várias técnicas, de lugares diferentes e trabalha a questão do aproveitamento total do ingrediente.”
Embora não tenha muito apelo, o prato é a expressão do estilo do casal – imprime uma série de provocações, com jogos de contraste de texturas e temperaturas.
No De Primeira, virou coqueluche a coxinha servida sobre um creme de milho, “para chuchar”, cuja massa, bem saborosa, é umedecida com caldo de frango. “O torresmo foi a coisa mais difícil de elaborar. Um boteco tem de ter torresmo, mas os bares fazem torresmo há mil anos, que demoram séculos para salgar, curar, secar e fritar. Não temos estrutura,” diz a chef.
A solução criativa, conduzida por Gabriel, foi usar uma massa para dar crocância. “A gente compra só a parte da carne da barriga do porco, cura no sal para que fique rosada e cozinha 12 horas em baixa temperatura. Ficam uns toletões de porco que a gente passa numa massa de tempurá, frita, corta e serve com limão. É um torresmo que não tem nada a ver com o do Mocotó, por exemplo, que é surreal, mas é gostoso de comer.”
Júlia sabe bem o trabalho que exige o preparo do torresmo do Mocotó. A primeira vez que entrou numa cozinha profissional, aos 18 anos, foi num estágio durante suas férias, no Mocotó, na Vila Medeiros. Ela pegava um ônibus até o metrô, percorria a linha de ponta a ponta até o Tucuruvi, e de lá pegava um ônibus para chegar ao restaurante do chef Rodrigo Oliveira, um dos mais celebrados do Brasil.
Segunda-feira era seu único dia de folga, mas Júlia pedia para comparecer mesmo assim, pois tinha interesse em acompanhar o trabalho do padeiro, responsável pelos pães e doces.
“Eu demorava mais de duas horas para chegar, mas ia feliz da vida, amava e aprendi muito lá.” Sua primeira tarefa no Mocotó foi limpar caixas enormes de moela. Também tinha de limpar tutano.
“Com uma faca sem ponta, a gente raspava o osso para ficar bem limpinho.” Era preciso, ainda, bater a carne de sol, depois limpa e curada, para ficar macia, em um movimento repetitivo, do qual se lembra até hoje.
Júlia sempre foi dedicada – considera-se uma “nerd” e “boa aluna”. Na época em que cursou as faculdades de gastronomia e nutrição ao mesmo tempo, equilibrando teoria e prática, ainda corria para o restaurante do Jamie Oliver, o extinto Jamie’s Italian, à noite, e ficava até a madrugada, para aprender. Com essa rotina, dormia menos de quatro horas por noite. “Um dia, bati o carro dormindo. Foi trash.”
A chef também se lembra de um cotidiano extenuante assim durante os meses em que estagiou no Noma, na Dinamarca, eleito diversas vezes como o melhor do mundo. “Era estressante em todos os níveis, muitas horas de trabalho, muita pressão, muita hierarquia. Foi enriquecedor, mas foi uma prova de fogo,” disse Júlia, que ia para o restaurante de bicicleta às sete da manhã e de lá saía somente de madrugada.
O Noma trabalha por temporadas temáticas e fecha entre uma e outra para pesquisa. Júlia teve a oportunidade de passar pelas temporadas de frutos do mar, de vegetais e de caça. Nas pausas, tinha de ir para o campo coletar plantas comestíveis para fazer conservas. “Eles nos deixavam em um descampado com uma tesourinha e um balde e só podíamos sair depois de juntar cem quilos de flor. Era apavorante.”
Dedicavam o dia seguinte a produções variadas com os insumos coletados, na cozinha do restaurante. Era preciso, por exemplo, fazer pilhas de dez pétalas de rosa em pequenas caixas, que depois iam à geladeira. As pétalas machucadas, sem serventia para a finalização dos pratos, eram prensadas e usadas para fazer óleo.
Ela ganhou algum respeito da equipe quando assumiu por uma semana a comida dos funcionários – café, almoço e lanche. “Éramos dois, eu e o Gabriel, e tínhamos de cozinhar para 120 pessoas e cuidar de tudo, inclusive lavar a louça, os talheres e as panelas.” O Noma era um sonho de Gabriel, e foi ele quem a estimulou a ir junto.
Nessa semana, cozinharam carne de porco com milho, colocaram Seu Jorge para tocar, fizeram coxinha e feijoada. “Não sei como a gente sobreviveu, mas quando acabamos, cada um assumiu uma praça na cozinha, que foi como uma promoção.”
Não foi sua primeira experiência internacional. Antes disso, Júlia trabalhou na Espanha, via faculdade de nutrição, num estágio que a manteve ultraconectada com a cozinha. Recebia demandas de receitas com características específicas para alimentar pacientes de hospitais e casas de repouso na Fundação Alícia, um centro com vocação social para promover a boa alimentação que conecta gastronomia e cultura, por um lado, e ciência e saúde, por outro.
Embora tenha atuado como nutricionista, exercitou seu talento como cozinheira e aprendeu protocolos importantes, com o benefício de estar imersa em uma fundação criada pelo chef catalão Ferran Adrià, um dos mais importantes e famosos do mundo, que revolucionou a cozinha nos anos 2000.
De volta ao Brasil, sofreu embates internos sobre que caminho seguir: nutrição ou gastronomia? Ambos a seduziam. Para se testar, resolveu participar do reality The Taste Brasil, do GNT, do qual saiu campeã aos 21 anos. Não só foi vencedora como também recebeu um convite do chef-anfitrião do programa, Felipe Bronze, para trabalhar em um dos seus restaurantes no Rio.
Foi na cozinha do Pipo que conheceu seu marido, Gabriel. “Começamos a namorar rapidíssimo, foi arrebatador, um mês depois a gente estava morando junto e logo fomos para o Noma”.
Essa alma meio livre do Gabriel o levou a convencê-la de abrir um negócio depois do outro. Todos fazem sucesso. Qual o próximo plano?, perguntei a ela. “Quando eu descobri que estava grávida, proibi o Gabriel de frequentar qualquer site de imobiliárias,” diz Júlia, rindo, com uma barriga de quase nove meses.