Se o futuro presidente do Banco Central pedisse um conselho a Henrique Meirelles, a resposta certamente seria: “Muita calma nessa hora.”

Calma sob pressão (Editora Planeta; 192 páginas) é a autobiografia do ex-banqueiro internacional, ex-presidente do BC e ex-Ministro da Fazenda que acaba de chegar às livrarias.

Em sua vasta trajetória profissional, Meirelles se viu sob pressão inúmeras vezes, mas sempre procurou manter a fleuma e fazer o que era necessário.

Suas maiores provas de fogo foram nos oito anos em que comandou o BC nos dois primeiros mandatos de Lula. Esquivando-se o tempo todo do fogo amigo, por muito pouco não foi substituído mais de uma vez.

Henrique MeirellesMas, com a tal da calma sob pressão, perseverou e atuou decisivamente para o saldo positivo na economia naquele período: crescimento médio de 4% ao ano, superávit primário nas contas públicas, inflação controlada, ‘fim’ da dívida externa, conquista do investment grade e 50 milhões de brasileiros fora da pobreza.

Goiano de Anápolis, Meirelles estudou engenharia civil na Politécnica da USP. Em 1974, ingressou no antigo BankBoston, onde ficaria 28 anos e chegaria à presidência mundial depois de superar as barreiras históricas de ascensão para alguém que não fosse um ‘Boston Brahmin,’ ou seja, um descendente da elite bostoniana.

O banco lhe daria projeção para retomar sua ambição de ingressar na vida pública; Meirelles nunca escondeu dos amigos que almejava chegar à Presidência.

A seguir, cinco momentos marcantes narrados por Meirelles, um dos raros homens de Estado brasileiros.

O CONVITE DE LULA

Em outubro de 2002, Meirelles se elegeu deputado federal pelo PSDB em Goiás. Dias depois do segundo turno, estava em viagem quando recebeu uma ligação de Aloizio Mercadante.

“Onde é que você está?”

“Estou em Nova York.”

“Ah, que bom! O Lula quer conversar com você e ele vai viajar amanhã para Washington, para fazer a primeira visita oficial como presidente eleito. Você pode ir a Washington conversar com a gente?”

Meirelles concordou. Na conversa, expôs o que via como maiores desafios momentâneos, que eram a falta de dólares causada pela crise de confiança e a disparada da inflação.

“Dá para resolver?” quis saber Lula.

Na sequência, veio o convite. Meirelles aceitou sob a condição de ter “total independência.”

“Não se tratava de uma extravagância pessoal,” afirma Meirelles no livro. “Era, e continua sendo, a melhor forma de a autoridade monetária ter liberdade de ação para atingir seu objetivo de controlar a inflação, estabilizar a economia e gerar as condições de segurança para investimentos privados.”

Já com o seu nome anunciado, Meirelles perguntou a Lula por que havia o chamado para o cargo.

O então presidente respondeu:

“Meirelles, é o seguinte: o problema do Brasil na época era com os bancos internacionais, não era? O que eu fiz? Convidei um presidente de um banco internacional para vir resolver o problema.”

ESTRANHO NO NINHO

Na primeira reunião do Copom, Meirelles e a diretoria do BC sabiam que precisavam demonstrar autonomia e reverter a desancoragem das estimativas para a inflação. A decisão foi subir ainda mais a Selic, para 25,5% – uma taxa real de 16%.

“Como essa era a primeira reunião do BC sob o comando de Lula, o mundo caiu,” escreve Meirelles. “Deputados e senadores do PT chiaram. Eu fui em frente. Se Lula queria de fato controlar as expectativas, ele precisava mostrar que o BC não ia se curvar às pressões políticas.”

E haja pressão. José Dirceu, então ministro da Casa Civil, saiu dando declarações de que na reunião seguinte Lula ordenaria o corte dos juros. Mas o BC subiu novamente, para 26,5%.

“Foi um acontecimento,” diz Meirelles, que enfrentou o fogo amigo até mesmo de um de seus principais aliados petistas, Aloizio Mercadante.

“Viver em Brasília é conviver com o fogo amigo,” diz Meirelles – ao menos para aqueles dispostos a comprar algumas brigas, poderia ter acrescentado.

Para Meirelles, foi a segunda alta na Selic – desafiando o tiroteio político – que sedimentou a credibilidade do BC, revertendo a deterioração nas estimativas de inflação.

Nas conversas com o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, Meirelles defendeu à época a elevação da meta para superávit primário, que subiu para 4,25%, ante os 3,75% herdados do Governo FHC.

No primeiro ano de Lula, o superávit acabou sendo ainda maior, de 4,35%.

(Já a equipe econômica de Lula 3 não parece ter pressa para registrar um superávit, por mínimo que seja.)

O JANTAR QUE NÃO HOUVE

Antonio Palocci, envolvido em denúncias, caiu em março de 2006. Para seu lugar foi Guido Mantega, que estava então na presidência do BNDES.

Naquele ano, mesmo com as revelações do Mensalão em 2005, Lula foi reeleito. O forte crescimento econômico o ajudou.

Sem Palocci, Meirelles perdeu um de seus maiores aliados no Planalto. As pressões seriam ainda maiores.

Lula, que havia até então respeitado a autonomia do BC, em 2007 ligou para Meirelles pedindo um corte nos juros.

“Senão nós não vamos crescer os 5% de nossa meta,” disse Lula. “Você precisa colaborar e baixar a taxa de juros.”

Meirelles não aceitou, mas ouviu críticas de Lula, que relatou opiniões de pessoas que apontavam o BC como um entrave à aceleração do PIB.

Naquele ano, a economia – mesmo sem a ‘ajuda do BC’ – avançou 6,1%.

Ainda assim, Meirelles seguiu sob ataque.

“Em maio de 2008, concluí que era hora de ir embora.”

O então presidente do BC procurou Lula. Ambos combinaram um jantar na casa de Meirelles.

No dia combinado, Lula não apareceu.

Uma semana depois, Meirelles perguntou ao presidente: “E a minha saída?”

“Meirelles, nunca mais fale disso,” respondeu Lula.

Uma narrativa mais detalhada dos bastidores da quase substituição de Meirelles por Luiz Gonzaga Belluzzo está num trecho do livro Eles não são loucos, do jornalista João Borges. (O dia em que Lula (quase) demitiu Meirelles )  

 O CONVITE DE TEMER

“Achamos que o impeachment vai passar e, se passar, eu gostaria de te convidar para ser ministro da Fazenda.”

Era Michel Temer no outro lado da linha, chamando Meirelles para assumir o comando da economia brasileira, numa ligação semanas antes da votação que encerrou o mandato de Dilma Rousseff em maio de 2016.

Em uma reunião no Jaburu, na véspera da votação, Meirelles delineou a Temer as medidas duras de ajuste, entre elas a ideia do teto de gastos.

Meirelles rememora no livro o que encontrou no primeiro dia de trabalho na Fazenda.

“Quando cheguei ao Ministério, no dia 12 de maio, não havia ninguém – não houve a habitual transmissão do cargo,” escreve Meirelles. “O antigo ministro, Nelson Barbosa, tinha ido embora sem deixar nenhuma informação sobre as finanças do País.”

No relato de Meirelles, os números das metas fiscais eram irreais. “Concluímos que o déficit verdadeiro para o ano seria de R$ 170,5 bilhões – 76% acima do previsto pelo governo anterior.”

Isso enquanto o Brasil enfrentava sua mais profunda recessão histórica, depois de anos seguidos da política do “gasto é vida” de Dilma Rousseff.

Foram aprovadas medidas como a Lei do Teto, e a Reforma da Previdência estava prestes a ser votada quando, em maio de 2017, houve o fatídico ‘Joesley Day.’

“A instabilidade política daquele momento fez com que muita gente temesse o afastamento do presidente,” lembra Meirelles. “Foi um caos.”

O Ibovespa mergulhou e só voltaria ao nível do início de maio três meses depois. A janela para reformas havia se fechado.

‘CHAMA O MEIRELLES!’

Temer, com popularidade baixíssima, decidiu não tentar a reeleição. Meirelles, realizando o sonho de anos de ser candidato à Presidência, saiu pelo MDB – e bancou a campanha com dinheiro próprio.

Espelhou sua estratégia na de Fernando Henrique Cardoso quando ganhou a eleição impulsionado pelo Real. Meirelles acreditava que a recuperação da economia engendrada por ele na Fazenda seria reconhecida nas urnas.

O bordão criado pelos marqueteiros foi “Chama o Meirelles!” Era o que tinham feito Lula e Temer quando precisaram apaziguar crises econômicas.

“Com o tempo, entendi o meu erro,” escreve Meirelles, porque “era um momento em que prevalecia o voto antissistema e o início da polarização política e ideológica.”

A facada em Jair Bolsonaro, na visão de Meirelles, definiu de vez o destino daquela disputa.

Meirelles conta que em novembro de 2018, já depois da eleição, participou de um debate na Cidade do México, organizado por Stanford, sobre a democracia nas Américas. Lá estava Steve Bannon, o estrategista da campanha vitoriosa de Donald Trump em 2016.

“Na palestra, ele se intitulou o responsável pela vitória de Jair Bolsonaro, operando através dos filhos do então presidente eleito,” narra Meirelles. “Na visão dele, a vitória era resultado da realidade paralela na qual Bolsonaro se apresentou como o representante da antipolítica.”

Meirelles percebeu cabalmente que sua campanha nunca teve chances.

“Ela era baseada na razão, no esclarecimento, e usava a televisão; enquanto Steve Bannon fez a campanha de Bolsonaro baseado na criação da realidade paralela, na emoção, e tudo isso só é possível com as redes sociais,” analisa Meirelles. “Imagens rápidas, frases fortes e sentenças curtas, muita emoção e pouca razão.”

A despeito da frustração com a selvageria eleitoral, o livro chega ao fim em tom ligeiramente otimista.

“Existe um debate, o que é normal, entre direita e esquerda, mas o que interessa são os fatos – e o fato é que não houve um ‘revogaço’ dos avanços anteriores,” escreve.

Para Meirelles, será necessário “perseverar em decisões difíceis” para o Brasil crescer de maneira sustentável e duradoura, mas ele vê um crescente consenso quanto ao que é preciso ser feito.

“É manter o rumo e calma sob pressão.”

 

O lançamento do livro será terça-feira, 24 de setembro, às 19h, na Livraria Travessa do Shopping Iguatemi, em São Paulo.

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