O deputado Rodrigo Valadares (União-SE) apresentou o Projeto de Decreto Legislativo nº 1.007/2025, propondo sustar as Resoluções 519, 520 e 521 do Banco Central — o conjunto normativo que regula o funcionamento das prestadoras de serviços de ativos virtuais (PSAVs) e passa a enquadrar a prestação de serviços com stablecoins dentro do regime cambial.

Na justificativa, o parlamentar acusa o BC de “abuso de poder”, sustentando que a autarquia teria extrapolado a Lei 14.478/2022 (o Marco Legal dos Criptoativos) ao enquadrar as stablecoins como se fossem moeda estrangeira.

A crítica soa forte, mas erra o alvo.

O Banco Central está apenas fazendo o que lhe cabe: estabelecer critérios claros para um mercado que cresceu rápido demais e vinha funcionando sem um enquadramento regulatório definido.

A questão não é de legalidade, mas de amadurecimento — quando a inovação atinge escala, o vácuo regulatório deixa de ser liberdade e passa a ser risco sistêmico.

As alegações do deputado, ponto a ponto

1. “O Banco Central extrapolou o poder regulamentar”

Não extrapolou.

O artigo 7º da própria Lei 14.478/2022 autoriza o BC a regular as atividades relacionadas a ativos virtuais “no que couber,” especialmente quando interagem com o sistema financeiro.

Ao incluir stablecoins no escopo cambial, o Banco Central apenas preencheu um vazio normativo.

A regulação não transforma stablecoin em moeda estrangeira: apenas determina que, quando usada em transações internacionais, siga o mesmo padrão de transparência e compliance exigido em qualquer operação de câmbio.

2. “A norma cria insegurança jurídica e inviabiliza o setor”

Na verdade, faz o oposto.

Antes da publicação das novas resoluções, o uso de stablecoins para remessas internacionais vinha crescendo rapidamente — muitas vezes fora de qualquer estrutura regulatória formal.

Agora, com a 521, essas transações passam a ter um enquadramento claro dentro do sistema cambial, o que garante rastreabilidade, transparência e segurança jurídica.

Com as novas regras, o Brasil ganha rastreabilidade, enquadramento legal e proteção aos usuários.

A formalização é o que separa inovação de improviso. Em todo o mundo, os países que avançaram na regulação de stablecoins — EUA e União Europeia — seguiram exatamente essa linha: integrar, não proibir.

3. “O BC tratou stablecoins como moeda estrangeira”

Falso.

As resoluções definem as stablecoins como ativos virtuais referenciados em moeda fiduciária, não moeda em si.

O tratamento é funcional, não conceitual: o foco é na operação, não no ativo.

O BC não criou um “novo tipo de moeda,” apenas enquadrou um novo instrumento dentro de um regime já existente.

4. “A medida abre espaço para tributação indevida e fuga de capitais”

O argumento é frágil.

O enquadramento cambial não cria novos impostos; é um mecanismo de controle macroeconômico e prevenção à lavagem de dinheiro.

A ausência de regulação, sim, é que favorece a fuga de capitais: sem trilha formal, qualquer remessa via stablecoin torna-se invisível ao sistema financeiro.

O que o BC fez foi fechar uma brecha, não abrir uma.

5.“Faltou transparência e diálogo com o setor”

Não procede.

O Banco Central conduziu um processo regulatório exemplar, com três consultas públicas amplas e documentadas.

A Consulta Pública nº 109/2024 tratou da estrutura das PSAVs (Prestadoras de Serviços de Ativos Virtuais), a CP 111/2024 abordou a integração entre o mercado de câmbio e os ativos digitais, e a CP 124/2025, ainda aberta, discute proporcionalidade prudencial e governança para fintechs menores.

Ou seja, o processo foi público, técnico e contínuo.

Apesar disso, o deputado apresentou o PDL um dia após a publicação das resoluções — pedindo não só a anulação da 521 (que trata das operações de câmbio com stablecoins), mas também das Resoluções 519 e 520, que definem os critérios de capital, estrutura e funcionamento das PSAVs.

Não se trata, portanto, de uma crítica pontual, mas de uma tentativa de desmontar todo o marco regulatório de ativos virtuais recém-construído no Brasil.

6. “A regulação sufoca a inovação e o empreendedorismo”

É fato que a norma traz novas obrigações: exige relatórios detalhados, limita valores por operação e impõe padrões técnicos semelhantes aos do sistema bancário.

Esses pontos aumentam o custo regulatório e podem reduzir a agilidade das fintechs menores.

Mas dizer que o BC “travou a inovação” é exagero.

A resolução não proíbe stablecoins — pelo contrário, as reconhece oficialmente como instrumento de pagamento dentro do mercado de câmbio.

O que o regulador fez foi submeter o uso dessas moedas digitais às mesmas regras prudenciais aplicadas às operações cambiais tradicionais.

Isso garante rastreabilidade, segurança jurídica e integração com o sistema financeiro, evitando que o blockchain se torne uma rota paralela de dólares fora do alcance regulatório.

O ponto sensato da crítica está em dois aspectos técnicos: a incompatibilidade entre o modelo blockchain 24/7 e o horário do Sistema Câmbio, e a necessidade de proporcionalidade regulatória — afinal, pequenas fintechs não têm a estrutura de um grande banco.

Esses ajustes são legítimos e certamente virão, como já aconteceu em outras agendas do BC.

Por que o mercado precisa dessa regulação

As stablecoins já representam 90% do volume de criptoativos negociados no Brasil — cerca de US$ 318 bilhões entre julho/2024 e junho/2025, segundo estimativa da Chainalysis.

No primeiro semestre deste ano, USDT e USDC movimentaram R$ 161 bilhões, o equivalente a 71% de todas as transações cripto no País.

Stablecoins lastreadas em reais já superaram R$ 6,5 bilhões em volume negociado até meados do ano, mais do que o total de 2024, segundo levantamento de mercado.

Grande parte dessas operações envolve remessas internacionais e pagamentos cross-border — áreas que exigem rastreabilidade e controle cambial.

Ignorar isso seria abrir espaço para uma economia paralela digital, sem visibilidade nem segurança para consumidores ou autoridades.

O BC brasileiro é reconhecido internacionalmente por regular para inovar, não para restringir — e o histórico do Pix, do Open Finance e do marco cambial de 2021 prova isso. As novas resoluções seguem essa linha: trazem segurança, formalidade e rastreabilidade, sem fechar as portas à tecnologia.

Acompanho o BC há 25 anos, e suas decisões sempre foram técnicas, coerentes e ajustadas quando necessário, com ampla escuta ao mercado.

Por isso, prefiro mil vezes ser regulado por um órgão técnico e competente do que pelo Congresso Nacional.

Essas resoluções não marcam o fim da inovação, mas o início da integração definitiva entre o câmbio, o sistema financeiro e o universo digital.

O desafio agora é calibrar as regras — para que o controle não mate a velocidade e a prudência não sufoque a inovação.

 

Edson Santos é fundador da Colink Business Consulting, especialista em meios de pagamento, autor do livro “Do Escambo à Inclusão Financeira – A evolução dos meios de pagamento” e coautor de “Payments 4.0 – As forças que estão transformando o mercado brasileiro”.