Numa entrevista recente ao Estadão, o Ministro Luís Felipe Salomão, vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça e líder da comissão que elaborou o anteprojeto de reforma do Código Civil, afirmou que o texto “está maduro para ser votado” e que “são poucas as proposições sem consenso.”

O tom é de encerramento: como se o debate estivesse concluído, a controvérsia fosse periférica, e a crítica, produto de desatenção. Não é. E o que se evidencia na entrevista é o oposto da maturidade: uma defesa retórica, protocolar e evasiva, que evita enfrentar o mérito dos questionamentos mais relevantes.

Desde o início, a entrevista expõe uma assimetria eloquente: as perguntas são agudas e pertinentes; as respostas, protocolares e superficiais. A jornalista cumpriu seu papel com rigor: questionou se o projeto não estaria criando, na prática, um novo Código Civil; mencionou o manifesto de 19 associações de advogados que pedem mais debate com a academia; apontou os riscos à liberdade de expressão nos dispositivos sobre remoção de conteúdo digital. 

Já o Ministro, por sua vez, optou por respostas evasivas, apostando na autoridade institucional como escudo retórico, sem enfrentar os problemas jurídicos de fundo. A autoridade invocada — seja ela a cúpula do Judiciário ou o verniz acadêmico — não é neutra. Ela emana de uma estrutura estamental que, como descreveu Raymundo Faoro em Os Donos do Poder, persiste em “se reproduzir indefinidamente, mediante a aplicação de um princípio de aglutinação interna e diferenciação externa.”

A defesa da proposta, ao esquivar-se do confronto substantivo, confirma essa lógica de exclusão: a decisão já foi tomada; ao debate, cabe apenas a homologação.

Sua justificativa central repousa em dois pilares frágeis: (i) a consolidação jurisprudencial do STJ e do STF; e (ii) o suposto respaldo da “doutrina acadêmica”. Como se isso bastasse para legitimar uma reconfiguração estrutural do Direito Civil brasileiro. 

Mas jurisprudência não é Constituição, e academia não é código. 

Nenhuma das duas pode substituir o necessário escrutínio público das normas, nem suprimir o exame rigoroso de sua racionalidade, coerência sistêmica e impacto regulatório. A jurisprudência, no Brasil, não raramente cumpre a função de legitimar práticas autoritárias sob uma vestimenta racional.

Entre os pontos que o Ministro omite — talvez por conveniência, talvez por estratégia — estão alguns dos aspectos mais criticados da proposta:

* A ruptura da responsabilidade como consequência de um ato ilícito, com a introdução da responsabilidade civil sem ilicitude, invertendo o fundamento clássico do dever de indenizar. Soma-se a isso a previsão de danos punitivos, figura importada do sistema anglo-americano, mas transplantada de forma descontextualizada e sem balizas claras, o que ameaça diretamente a segurança jurídica e abre espaço para condenações arbitrárias.

* A ampliação descontrolada de cláusulas gerais, como “função social”, “ordem pública” e “dignidade da pessoa humana”, que deixam de operar como limites interpretativos e passam a funcionar como pretextos normativos para o ativismo judicial.

A proposta permite, por exemplo, que contratos sejam anulados judicialmente com base em juízos morais indeterminados, substituindo a vontade das partes pela vontade do juiz. Essa abertura fere a autonomia privada, compromete a previsibilidade jurídica e ameaça a segurança dos negócios, especialmente em contextos patrimoniais e empresariais.

Esse tipo de formulação normativa — vaga, ostensivamente moralizante, e carente de critérios operacionais — não fortalece o juiz: torna-o órfão de norma, refém de expectativas difusas. O que se apresenta como “abertura” é, na prática, uma forma de desresponsabilização legislativa. O legislador lava as mãos e transfere ao Judiciário o arbítrio hermenêutico.

Nada disso foi enfrentado na entrevista. Em vez disso, o Ministro recorre ao lugar-comum da “modernização necessária”, evocando biotecnologia, internet e engenharia genética como justificativas genéricas — como se essas inovações exigissem, por si sós, a remodelagem do Código Civil.

É o uso de palavras grandes para encobrir lacunas normativas. 

A modernização que se anuncia é de forma, não de conteúdo. O vocabulário é novo, mas os mecanismos de poder são os de sempre: centralização, opacidade, deslegitimação da crítica. Nas palavras de Faoro, é a resiliência da forma patrimonial — “em mudança de acomodação e não estrutural” — que permite ao velho estamento se adaptar sem perder o controle. Sob o pretexto de avançar, perpetua-se a velha engrenagem de poder sem controle.

Há, também, um silêncio eloquente: nenhuma linha sobre análise de impacto regulatório. Nenhuma estimativa sobre o aumento de judicialização, os efeitos sobre o crédito, o custo para as empresas, o desestímulo à inovação contratual. Não há dados. Não há estudos. Não há cautela. Apenas confiança em si mesmo e na reputação dos que assinaram o anteprojeto. 

Essa omissão não é acidental. Trata-se da manifestação atual daquilo que Faoro nomeou como “carapaça administrativa”, que recobre a nação e impede sua respiração institucional. A racionalidade técnica do anteprojeto, longe de iluminar, obscurece: é forma vazia, impermeável à realidade econômica, à experiência forense e à prática social.

Por fim, ao afirmar que “são poucas as proposições sem consenso”, o Ministro adota uma estratégia já conhecida no debate público brasileiro: a de deslegitimar o dissenso que recusa o projeto como um todo, exigindo, em troca, sugestões pontuais de alteração — como se a única forma válida de crítica fosse a de quem aceita o rumo geral e apenas propõe ajustes. 

Trata-se de uma técnica retórica voltada a anular “o direito de dizer não”, exatamente como denunciei em artigo com o mesmo nome, tratando de uma fala do Professor Tartuce. A recusa fundamentada, quando dirigida ao próprio espírito da proposta, é tratada como sabotagem ou negativismo. Mas em matéria legislativa, o que importa não é o formato da objeção, e sim o seu fundamento.

O Código Civil não é um manifesto coletivo: é a base da vida jurídica privada, o alicerce dos contratos, das relações familiares, patrimoniais e empresariais. Exige precisão. Exige contenção. Exige responsabilidade.

O Ministro afirma que “são poucas as proposições sem consenso”, como se o consenso fosse critério de verdade e não simples convenção entre iguais. Lembrei-me então de um conhecido personagem machadiano — Brás Cubas, defunto autor, que, na obra, quis reformar o mundo com um emplastro. Era, dizia ele, um remédio para as dores da humanidade. 

Pois bem. Este anteprojeto me parece irmão desse bálsamo imaginário. Apresenta-se como modernização, mas não cura nada. Reorganiza artigos, embeleza conceitos, muda o léxico — e conserva intactos os vícios de origem. Tudo se passa como na receita de Brás: “O efeito principal era moral”. E a moral, sabemos, é o nome polido da conveniência. Chamam isso de maturidade. Mas, no fundo, é só presunção — no pior sentido jurídico da palavra.

Leonardo Corrêa é advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos fundadores e presidente da Lexum.