Tolice é viver a vida assim, sem aventura.”

Os gregos antigos iam ao teatro, antes de mais nada, para discutir os grandes temas sociais. Compreendiam a força educativa da arte. Ésquilo e Sófocles levaram seus conterrâneos a pensar, principalmente, sobre justiça, igualdade e liberdade.

Mais tarde, Shakespeare fez sua plateia refletir, para além das grandes vicissitudes da humanidade, acerca da tirania, novamente colocando em debate o tema da liberdade.

O nosso Castro Alves, por sua vez, dedicou seus versos à liberdade – ou melhor, fez disso uma luta, pois se engajou com a alma na campanha abolicionista. “A praça! A praça é do povo / Como o céu é do condor / É o antro onde a liberdade / Cria águias em seu calor!”, escreveu em 1864.

Um pouco adiante na nossa história, Medeiros e Albuquerque venceu o concurso lançado pelo governo provisório do Marechal Deodoro da Fonseca que buscava escolher um novo hino para o País.

Acabou por se tornar o hino da república que nascia, com a seguinte estrofe: “Liberdade, liberdade / Abre as asas sobre nós / Das lutas na tempestade / Dá que ouçamos tua voz.”

Essas inspiradoras palavras acabaram por se tornar um dos mais populares sambas-enredo, quando repetidas mais de 100 anos depois, em 1989, pela Imperatriz Leopoldinense, na maior festa popular do mundo.

O poeta Alvarenga Peixoto, um dos líderes da Inconfidência Mineira, sugeriu o lema do movimento: “Libertas Quae Sera Tamen” (liberdade ainda que tardia), hoje presente na bandeira de Minas Gerais – e já traduzido como “liberdade ainda que à tardinha” e também, como contou Vinícius de Moraes, “Liberta que serás também.”

Cecília Meireles, com a força do Romanceiro da Inconfidência, definiu: “Liberdade, essa palavra / que o sonho humano alimenta, / que não há ninguém que explique / e ninguém que não entenda”. 

O poeta – ou melhor, os poetas – ao longo da história exaltam a liberdade por meio do teatro, da música e das letras. Ensinam pela arte.

​Dias atrás, o poeta Antônio Cícero faleceu na Suíça, para onde havia ido porque lá se permite a morte assistida, a eutanásia. Pouco antes de morrer, Antônio Cícero enviou uma sucinta carta aos amigos mais próximos, começando por dizer: “Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer.”

​Em seguida, o poeta explicou os males que sofria em função da doença: já não reconhecia os amigos, não conseguia escrever, nem tinha condição de se concentrar para ler, a coisa que ele mais gostava de fazer.

A missiva termina com uma lição e um gesto de afeto: “Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade. / Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!”

​Embora Antônio Cícero tenha nascido no Rio de Janeiro, sua inteligência e sensibilidade o levaram para o mundo. Depois de se graduar em filosofia na PUC, estudou na Universidade de Londres e em Georgetown, em Washington. Foi membro da Academia Brasileira de Letras, professor universitário, filósofo e ensaísta. Principalmente, foi poeta.

​Ao lado de sua irmã, Marina Lima, e de outros grandes nomes da música brasileira, como Lulu Santos e João Bosco, Antônio Cícero fez o povo declamar poesia. Foi autor de clássicos do repertório popular, como “Você me abre seus braços, e a gente faz um país!” e “Meu amor, se você for embora, sabe lá o que será de mim.”

​A morte nos paralisa. Ela nos mostra nossos limites de forma fria e implacável. Diante dela, ficamos perplexos.

​Se os poetas, ao longo da história, nos instruíram sobre a liberdade em vida, a morte de Antônio Cícero também traz lições sobre o livre arbítrio.

​“Navegar é preciso; viver não é preciso,” teria dito, segundo o historiador Plutarco, o general romano Pompeu. Muito tempo depois, a frase foi imortalizada por Fernando Pessoa. Mais importante do que viver, precisamos navegar. Ler, pensar, comer, namorar, desfrutar dos amigos. Sem isso, do que vale a vida? Sem isso, sem descobertas ou aventuras, melhor não viver. Assim, precisamos ter a liberdade dessa escolha, a escolha pela dignidade, ainda que seu preço seja a própria vida.  

​Muitas religiões condenam o suicídio. Consideram um pecado tirar a própria vida. Hamlet já se havia insurgido contra essa ordem: “Por que o Eterno fixou suas leis contra o suicídio?”

​Se uma pessoa padece, estaria condenada a viver com limitações, dores, despida de integridade e prazer? E quando a vida passa a ser um martírio? Por que retirar do indivíduo que vive em agonia a liberdade de escolher morrer?

Carlos Drummond de Andrade, mais um poeta, num curto poema intitulado “liberdade” termina dizendo: “Mas livre, bem livre, / é mesmo estar morto.”

​Sem querer polemizar – se é que isso é possível quando se fala desse tema – vale lembrar que Sócrates, depois de seu julgamento e de receber a pena de morrer ingerindo cicuta, teve a oportunidade de fugir.

Preferiu contudo morrer – por coerência, por dignidade.

Também Jesus poderia ter escapado da cruz, mas aceitou seu martírio pelo mais nobre dos motivos, creem os cristãos. Figuras icônicas da civilização, cada uma por seus motivos, escolheram deixar de viver.

A morte do poeta Antônio Cícero nos faz pensar, muito antes de discutir o que se considera pecado, sobre a força que a nossa sociedade dá ao conceito de liberdade.

​Evidentemente, falo da liberdade que não maltrata ninguém. A liberdade que uma pessoa deve ter para escolher os destinos de sua própria existência desde que, com isso, não ofenda ninguém. A liberdade deve ser respeitada, porque apenas sendo livres confirmamos nossa condição humana.

​Joan Manuel Serrat, poeta cantante espanhol, musicou os versos de Antônio Machado, outro grande nome da poesia daquele país. Numa das mais conhecidas e belas dessas canções, fala-se do poeta que morreu longe de casa – Murió el poeta, lejos del hogar / Le cubre el polvo de un país vecino. Era uma referência ao próprio Antônio Machado, que por conta da Guerra Civil espanhola teve que escapar para a França para não ter o destino de Federico Garcia Lorca, outro grande poeta da literatura espanhola, fuzilado em 1936 pelos franquistas.

Antônio Machado fugiu para morrer longe de sua terra. Fugiu para ter liberdade. Com Antônio Cícero sucedeu algo semelhante. Para exercer sua liberdade, a liberdade de ser digno, teve que deixar o Brasil, um país onde o livre arbítrio de abreviar a vida, quando a vida virou sofrimento, é negado.

Antônio Cícero foi coerente com o que pregou. Como poeta, ensinou com a própria vida a força da liberdade. Viver não é preciso; navegar é preciso. Num dos mais conhecidos versos da música popular, de sua autoria, Antônio Cícero antecipou: “Me dá um beijo, então, aperta a minha mão. Tolice é viver a vida assim, sem aventura.”

 

José Roberto de Castro Neves é sócio do Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados (FCDG).