Não existe segurança jurídica no Brasil – vamos aceitar que dói menos. Seremos todos mais felizes.

Tendo interditado a discussão sobre a redução do gasto público, e firme na convicção de fazer o ajuste fiscal somente pelo lado da receita, o Governo Federal editou, no último dia útil de 2023, uma Medida Provisória compreendendo três novidades tributárias, unidas por um laço natalino: o desprezo à segurança jurídica.

A primeira das medidas, e a mais grosseira, é a revogação da chamada desoneração da folha. Tal política, que alcança hoje 17 setores da economia, foi adotada em 2011 e substitui a contribuição previdenciária patronal de 20%, incidente sobre os salários, por alíquotas de 1% a 4,5% incidentes sobre a receita bruta. Podemos ter críticas ao modelo (eu pessoalmente as tenho). Claro que não se deveria conceder um benefício desse tipo apenas no pressuposto de que haverá aumento da oferta de empregos.

O correto seria um mecanismo de controle que condicionasse a fruição do benefício à efetiva maior oferta de empregos. Mas o que acho ou deixo de achar é irrelevante. O fato da vida é que o Congresso legislou, dias atrás, optando pela prorrogação da desoneração. O Presidente da República vetou o dispositivo e o Congresso derrubou o veto; o sistema de checks and balances funcionou perfeitamente.

Hoje em dia fala-se muito em salvar a democracia. Mas a democracia é o governo do povo para o povo. E se os representantes do povo estão no Congresso, a vontade deles deve ser sempre soberana. Chega a ser ultrajante que o Poder Executivo, vencido no debate com o Poder Legislativo, faça uma MP para afrontar a decisão dos representantes do povo.

É verdade que o propósito de burlar a vontade legislativa não é prerrogativa do atual Governo. O anterior tentou fazer o mesmo mas foi impedido pelo STF, que considerou que “o que se tem é um quadro no qual o presidente da República não aceita o vetor constitucional nem a atuação do Poder Legislativo e busca impor a sua escolha contra o que foi ditado pelo Parlamento, que é, no sistema jurídico vigente, quem dá a última palavra em processo legislativo”.

A segunda medida cria uma limitação mensal para os contribuintes compensarem créditos reconhecidos por decisão transitada em julgado. Para justificá-la, o Ministro da Fazenda aludiu à questão da compensação dos valores pagos a título de inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/COFINS, e afirmou que o governo precisa ter previsibilidade orçamentária e que, somente em 2023, houve “queda de arrecadação de mais R$ 60 bilhões não esperada, a título de compensação”.

O que o titular da Fazenda não mencionou é que a União provisiona os valores decorrentes de ações judiciais a ela desfavoráveis. Em 2023, após descontar os valores utilizados nos anos anteriores, foi indicado no orçamento o valor de R$ 236 bilhões somente para essa tese. Ou seja, inexiste qualquer surpresa. O argumento é um sofisma. O leitmotiv evidentemente é o aumento da arrecadação.

Quem precisa de previsibilidade aqui é justamente o contribuinte, que após vencer uma disputa judicial de mais de duas décadas deveria ver respeitada a decisão judicial que determinou a devolução dos pagamentos indevidos.

Qualquer tentativa de se tolher essa compensação equivaleria à criação de um empréstimo compulsório – à míngua dos requisitos constitucionais – além de ofender a própria coisa julgada. No mínimo por uma questão de dever de lealdade para com os contribuintes, a nova regra deveria se aplicar apenas a decisões transitadas em julgado após sua edição.

A última medida pretende extinguir abruptamente o PERSE, programa criado para compensar setores prejudicados pela pandemia. Desde sua origem, a lei que criou o regime prevê alíquota zero de IRPJ, CSSL, PIS e COFINS por 5 anos.
Como ficam as empresas que organizaram seus negócios confiando no Estado? Não se pode puxar o tapete do contribuinte. Justo para evitar situações como essas é que o Código Tributário Nacional prevê que não podem ser livremente revogados os benefícios fiscais concedidos por prazo certo e em função de determinadas condições.

Agora veja-se a situação dos contribuintes: começam o ano sem saber a qual regra estão submetidos. Como as empresas podem fazer seus planejamentos ante essa balbúrdia normativa? Vale a MP? O que dirá o Congresso sobre ela?

Em resumo, esse pacote de Natal trouxe restrições aos direitos dos contribuintes, justamente para nos lembrar que vivemos numa terra onde a segurança jurídica é apenas um chavão. E isso é uma pena, pois como advertiu Tolstói, o respeito ao passado é o que distingue a civilização da barbárie.

Luiz Gustavo Bichara é sócio do Bichara Advogados.