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O papel dominante do dólar no sistema financeiro internacional sobreviveu ao colapso do sistema de Bretton Woods em 1971 porque não havia alternativa viável.

Mas aquela crise ilustrou que o problema da perda de confiança no dólar – por um acúmulo secular e dificilmente reversível das obrigações financeiras líquidas dos EUA com o resto do mundo, o chamado Dilema de Triffin – poderia se repetir.

Para garantir ao dólar seu papel de moeda reserva, os EUA teriam que manter sua estabilidade, não mais pela paridade de conversão em ouro, mas como qualquer moeda fiduciária, por uma promessa tácita de contínua estabilidade de valor a seus portadores, evitando o crescimento descontrolado das suas obrigações líquidas com o resto do mundo.

Desde então o dólar manteve seu papel hegemônico nas transações entre terceiros e, principalmente, nas transações financeiras internacionais. E isto aconteceu enquanto a economia americana perdia importância econômica – sua parcela do PIB mundial encolheu de 35% a 26% desde 1971 – e, o que é surpreendente, gerando por mais de cinco décadas uma sequência de déficits em conta corrente – ou seja, investindo mais do que poupando. Os déficits em conta corrente chegaram a um valor cumulativo de 40% do PIB americano em 2008.

O acúmulo destes déficits externos incessantes implica em contínuo endividamento dos EUA com o resto do mundo para financiar os residentes no país. Assim, eles progressivamente erodiram a posição líquida de investimentos internacionais (NIIP, na sigla em inglês) dos EUA, a diferença entre o valor dos ativos estrangeiros em poder de agentes americanos e o valor dos ativos americanos em poder de estrangeiros. Deveriam, portanto, ter acabado por minar novamente a confiança do resto do mundo na estabilidade do dólar.

Entretanto, isto não aconteceu. 

A explicação da permanência da confiança no dólar apesar de contínuos déficits externos é que os ativos americanos no exterior – os grandes investimentos diretos feitos pelas grandes corporações americanas desde o pós-guerra e investimentos mais recentes em ações em bolsa no resto do mundo – cresceram e se valorizaram continuamente em relação às obrigações internacionais dos EUA, que consistiam principalmente em títulos do Tesouro americano.

Assim, este efeito de aumento do valor relativo dos portfólios de ativos internacionais dos EUA quase compensou o acúmulo dos déficits em conta corrente e fez com que a NIIP dos EUA, embora caindo secularmente, ainda ficasse em confortáveis 5% do PIB em 2007.

Mas de 2015 para cá, a maré mudou. Como mostra a figura abaixo, desde 2010 a NIIP americana despencou para cerca de assustadores US$ 24 trilhões, ou 82% do PIB em 2024, e continua caindo.

grafico 1

Parte disso ainda é explicado pelo efeito do tradicional vício americano de poupar menos do que investe. Apesar do crescimento dos déficits em conta corrente ter desacelerado até recentemente, acumularam quase US$ 10 trilhões no período. Mas o aumento exponencial da NIIP é explicado pelo efeito da explosão do valor relativo dos portfólios de ativos em dólar no poder de estrangeiros nos últimos dez anos, e já totalizava US$ 26,8 trilhões em 2023, algo como 97% do PIB.

Este “efeito de valorização relativa de portfólio” reflete, em parte, a consolidação da liderança global dos mercados de dívida americanos e uma apreciação cambial secular do dólar, que acumulou 30% em termos reais efetivos desde 2008.

Mas a maior parte do crescimento da NIIP provém da performance espetacular dos mercados americanos de ações desde o fim da grande recessão – que elevou a valor de mercado das empresas americanas listadas a atingir mais da metade do valor do mercado mundial de equities, turbinada pelo crescimento das “magnificent seven”, que hoje respondem por cerca de 40% do valor das empresas no S&P 500.

Além disso, o valor dos ativos estrangeiros em poder de americanos teve crescimento relativamente baixo, fazendo com que as obrigações líquidas dos EUA com o resto do mundo tivessem um aumento vertiginoso.

Estes eventos tiveram impacto importante na composição dos ativos americanos no portfólio dos investidores estrangeiros. O gráfico abaixo mostra que nos últimos dez anos a participação de ações americanas em portfólios estrangeiros aumentou de cerca de 30% a mais de 50%, e hoje soma quase o dobro do valor dos títulos do Tesouro americano.

grafico 2

Na conjuntura atual – uma transferência de poder de grande instabilidade em Washington e um frágil equilíbrio macroeconômico americano – ter este nível sem precedentes de endividamento externo líquido, sendo 77% em poder de agentes privados, deveria levantar preocupações sobre o futuro do dólar.

É claro que, nestas condições, será importante que o novo governo sinalize a única política ao seu alcance para reduzir o déficit em conta corrente: um rápido ajuste fiscal que permitisse diminuir o hiper estímulo de demanda herdado do governo Biden, reduzindo a inflação e permitindo queda de juros que ponha fim à apreciação do dólar.

Entretanto, os EUA parecem ter caminhado para uma espécie de armadilha fiscal brasileira, onde gastos passíveis de corte discricionário pelo Executivo tornaram-se parte pequena do orçamento da despesa. 

Hoje, despesas “intocáveis” como Saúde Pública, Seguridade Social, Juros, Defesa e Veteranos de Guerra deixam somente cerca de US$ 1,4 trilhão ao alcance da tesoura do estabanado DOGE de Elon Musk, a aposta de Trump para reduzir ao menos a metade do déficit de US$ 1,8 trilhão, trazendo-o mais para perto de 3% do PIB como o novo Secretário do Tesouro sinalizou ser necessário para o ajuste.

Se essa bala de prata não funcionar, Trump terá que tirar outro coelho da cartola, mas passando a andar em gelo fino quanto ao futuro do dólar, especialmente se quiser aprovar seu prometido corte de impostos enquanto a economia digere a confusão criada pela guerra comercial que deflagrou.

Winston Fritsch é economista, PhD em Economia pela Universidade de Cambridge, e foi Secretário de Politica Econômica do Ministerio da Fazenda. O autor agradece a assistência de João Cottas na composição deste artigo.