A operação contra o Comando Vermelho no Rio de Janeiro e a Operação Carbono – que documentou a presença do PCC na cadeia dos combustíveis e sua lavagem de dinheiro no mercado financeiro – serviram para mostrar que, de São Paulo à Amazônia, não há Estado da federação que não sinta a presença do crime organizado.
Diante da extensão e gravidade do problema, é natural nos perguntarmos se já chegamos ao tipping point − o ponto de inflexão a partir do qual fica muito difícil reverter a situação – ou se ainda há tempo de conter a avalanche.
Além da urgência implícita na pergunta, a resposta depende da qualidade da reação contra o crime organizado. Sem um bom plano de voo, qualquer destino parece servir, e qualquer medida isolada parece um avanço – mas não é. O crime organizado tem sofisticação, estrutura empresarial e treinamento eficiente aqui e no exterior, e conseguiu se infiltrar nos três Poderes. Não serão dois ou três remendos que o conterão.
São necessários três eixos para reverter a situação.
Primeiro, criar leis que elevem o custo do crime e reduzam a impunidade dos criminosos, levando em conta o que deu certo na experiência internacional e doméstica.
Segundo, é preciso melhorar a qualidade dos serviços públicos − segurança, saúde, educação, infraestrutura − retirando dos criminosos a vantagem de “substituir o Estado” em troca da submissão dos cidadãos.
Terceiro, é crucial o envolvimento ativo da sociedade civil na elaboração e defesa das propostas, a única maneira de forçar os detentores do poder a atuarem contra os criminosos. Desânimo, medo, acomodação e apatia são fermento para o crescimento do crime.
Depois de três anos, e considerando que a segurança pública será uma pauta central nas eleições do ano que vem, o Governo enviou ao Congresso um Projeto de Lei para lidar com o assunto. Parece ser um projeto muito fraco, uma colcha de retalhos sem lógica interna nem estratégia definida.
Ao procurar agradar a todos, o PL perde eficácia, foco e agilidade, tornando-se incapaz de enfrentar a situação atual – tanto pelo que deixa de fazer, quanto pelos abrandamentos propostos em normas vigentes.
O texto não reconhece que o crime organizado atingiu o patamar de máfia no País, de acordo com todos os critérios considerados na literatura; e prefere trocar o conceito de máfia pelo de “facção”, sem que se saiba que tipo de estrutura o conceito escolhido reflete.
Seria a “nossa máfia” mais boazinha que as demais, merecendo indulgências? O tempo, implacável, vai confirmar o que já se intui.
Comparando a proposta do Governo com a legislação antimáfia italiana, em vigor há quase quatro décadas, nota-se que faltam os vetores fundamentais que fizeram a diferença no combate às máfias italianas, dentre os quais estão: a criação de um fast track legal; o rigor das penas − e de seu cumprimento − para os criminosos mafiosos; regras rígidas de funcionamento do cárcere duro, as prisões de segurança máxima; e a criação da Direzione Investigativa Antimafia (DIA), ou Agência Nacional Anticrime Mafioso.
O projeto não prevê a criação de um fast track, ou seja, um trilho legal paralelo à morosíssima legislação atual para agilizar investigações e punições dos crimes mafiosos, ou de facções, como define o PL.
A lentidão favorece a impunidade e o crescimento das organizações criminosas, facilitando a corrupção de agentes públicos para fornecer favores e proteção. Além disso, embora a previsão das penas tenha aumentado em relação às atuais, para 8 a 15 anos, podendo chegar a 30 se houver homicídio a favor da organização, poderão ser reduzidas por várias brechas. Também é grave a ausência da hipótese de prisão perpétua para os líderes, crucial na lei antimáfia.
Com relação às prisões de segurança máxima, o projeto propõe que o condenado inicie o cumprimento da pena “preferencialmente” – não “obrigatoriamente” – em presídio de segurança máxima, ficando a cargo da autoridade judicial competente pedir, mediante evidências, a gravação de conversas nas visitas ao parlatório.
Esse monitoramento é elemento indispensável em prisões de segurança máxima. Grave, também, é a previsão de visitas íntimas nesses presídios, hoje proibidas. Ou seja, o projeto consegue piorar o pouco que foi feito nos últimos anos, que é o rigor do isolamento dos líderes de organizações criminosas nas prisões de segurança máxima.
Por fim, é lamentável a ausência da proposta de criação de uma Agência Nacional Anticrime, com o objetivo de prevenir, investigar e reprimir o crime organizado mafioso.
Esse órgão central deveria ser responsável pela criação de mecanismos de cooperação e intercâmbio de informações entre instituições nacionais e internacionais, de combate ao crime organizado, incluindo Política Federal, Polícia Civil, Ministério Público, Receita Federal e demais órgãos de segurança pública e de controle.
Estaria assim garantida a integração nacional dos órgãos investigativos, gerando rapidez e eficiência em suas ações, bem como a centralização de informações, inteligência, treinamento adequado e regras que assegurassem a transparência e a responsabilização das ações preventivas e repressivas, evitando o uso arbitrário da força policial e gerando eficiência nas ações necessárias.
O estágio atual de sofisticação e abrangência atingido pelo crime organizado do tipo mafioso no País exige uma resposta institucional à altura, que infelizmente não é endereçada a contento pelo projeto do Governo. Diante da gravidade do quadro, é preciso encarar com seriedade o desafio, sob pena de perdermos o controle da situação.
Maria Cristina Pinotti é economista e sócia da Pinotti & Schwartsman Associados, organizadora e coautora do livro ‘Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas’’.
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