John Stuart Mill foi um homem à frente de seu tempo. 

Filho de um intelectual bem relacionado, recebeu uma criação experimental na qual desde cedo aprendeu grego e latim, além de ser introduzido às obras clássicas.

Precursor na defesa dos direitos das mulheres e liberal ferrenho, Stuart Mill publica, em 1859, aos cinquenta e três anos, O ensaio sobre a liberdade, no qual defende o respeito à individualidade e à liberdade de expressão.

Sobre ouvir o que o outro tem a dizer, Stuart Mill preconizou: “o mal peculiar de fazer calar a enunciação de uma opinião está em que é um roubo feito à raça humana; tanto à posteridade quanto a geração atual; aqueles que divergem da opinião, ainda mais àqueles que a seguem. Se a opinião é justa, são privados da oportunidade de trocar o erro pela verdade: se injusta, perdem, o que é um benefício quase do mesmo quilate, o chegar à percepção mais clara e à impressão mais viva da verdade que a colisão desta com o erro produz.”

Uma lição importante. Ouvir. Respeitar uma opinião que não seja a nossa.

Na última Assembleia Geral da ONU, os representantes brasileiros não assistiram ao discurso do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Uma ausência deliberada. Uma “lacração diplomática”, se se permite esse termo paradoxal. É verdade que a delegação de Israel, na véspera, não aplaudira a fala do nosso presidente, mas ao menos ouviu o que Lula tinha a dizer.

Duas semanas antes, em 15 de setembro, num debate dos candidatos à prefeitura da maior cidade do Brasil, um deles, reagindo a provocações grosseiras, desferiu uma cadeirada em outro. Ao vivo e a cores. A rigor já não havia debate, pois os postulantes não prestavam qualquer atenção uns nos outros. A cadeirada permitiu ao evento um desfecho coerente com o padrão da falta de civilidade, tônica daquele lamentável encontro.

Desaprendemos a ouvir a opinião dos outros?

A partir de preconceitos de variadas origens – posições políticas, crenças religiosas, posições identitárias, predileções de agremiações futebolísticas, escolhas de meio de comunicações etc.  – fecham-se os ouvidos.

“Não leio tal jornalista porque ele tem essa ou aquela posição”, “Fulano não pode falar sobre determinado drama, porque não sofreu o mal”, “Sicrano não tem lugar de fala”

Com tiradas superficiais desse jaez, desqualificam-se as pessoas a ponto de se desconsiderar o que elas têm a dizer.

Fareed Zakaria, um jornalista de origem indiana, muçulmano, há muito radicado nos Estados Unidos, ganhou notoriedade em 2000 ao ser nomeado editor da Newsweek. Tornou-se uma celebridade também quando passou a apresentar um programa na CNN.

No ano passado, Zakaria lançou O futuro da liberdade, no qual apresentava ideias simples mas contundentes: sustentava, por exemplo, que o sucesso da democracia em um país se relaciona intimamente com o sucesso da economia. 

Zakaria também reforçava a importância das instituições dando um bom exemplo: o império Romano ruiu apesar de suas excelentes leis. Ruiu porque as instituições se corromperam: as leis não foram suficientes para evitar a debacle. O livro foi um retumbante sucesso.

Zakaria se notabilizou por tomar posições. Apoiou Barack Obama na candidatura à Casa Branca, e em 2003 aprovou a invasão do Iraque. Mais adiante, em 2017, posicionou-se favoravelmente ao envio de mísseis contra a Síria, já no Governo Trump. Como bom jornalista, deixou claro o compromisso com sua consciência.

Recentemente, Zakaria lançou Era das revoluções, que a Intrínseca acaba de lançar no Brasil. O primeiro país citado no livro é exatamente o Brasil, para explicitar como a política global se encontra dominada – ou atolada – pela divisão maniqueísta entre o que se qualifica como direita e esquerda.

O livro volta-se para a história, para contar, desde as primeiras revoluções liberais – nos Países Baixos e na Inglaterra – como o mundo, numa carreira de tropeços, chegou até hoje, sempre alavancado por mudanças disruptivas.

Zakaria explica, logo no início, as origens dos termos “direita” e “esquerda”, surgidos no começo da Revolução Francesa. A partir daí, esses conceitos ganharam nova dimensão à medida em que eclodem grandes mudanças. 

Modelos são sucedidos e, como na famosa passagem de Marx, “as relações que se substituem tornam-se antiquadas antes de se consolidarem.” Na perspectiva de Zakaria, a Revolução Industrial foi a “mãe” das demais revoluções. Citando Hobsbawm, ele desenvolve o pensamento: “A Revolução Industrial (britânica) engoliu a revolução política (francesa)”.

A Era das Revoluções serve como aula de história, com um confessado e fundamentado viés liberal. 

Essa percepção econômica da história remete a outro livro, que li há 40 anos, ainda no colégio: História da riqueza do homem, de Leo Huberman, obra de 1936. 

Huberman, marxista, parte da mesma perspectiva da importância da economia para a construção da História, mas, ao contrário de Zakaria, aposta no Estado como panaceia universal. (Muitos de minha geração beberam nessa fonte; alguns conseguiram superá-la, outros sofreram avaria permanente.)

No novo livro, quando analisa nossos dias polarizados – marcados pela profusão de informações e a falta de real diálogo – Zakaria alerta: devemos confiar na civilização e suas conquistas, inclusive na liberdade, sob pena de sucumbirmos a uma nova idade das trevas.

Zakaria recebe críticas por ser liberal. Com base nisso, há quem sequer considere suas ideias. Eis o impasse. Conservadores só se interessam em ouvir conservadores. Progressistas não toleram nada que não seja progressista. E assim segue a ciranda, com a perda da prática da escuta.

Como saberemos a verdade dos outros se não a conhecemos?

A deusa Atenas, na Orestéia de Ésquilo, ensina que o acusado, por mais abominável que seja seu crime (na peça, Orestes é réu confesso do assassinato da própria mãe) merece ser ouvido. Orestes recebe um julgamento justo. O reconhecimento do benefício desse modelo de comportamento, ocorrido há 2500 anos, segundo o qual até mesmo o criminoso merece ser ouvido, reluz como uma das grandes conquistas da civilização.

Mais recentemente, a humanidade teve outra oportunidade de demonstrar seu vigor. Logo após a Segunda Grande Guerra, os principais comandantes nazistas foram levados a julgamento em Nuremberg. 

Receberam um tratamento diferente daquele que, anos antes, promoviam. Às vítimas do Holocausto não foi dada a oportunidade de defesa. Os Aliados, contudo, vencedores do conflito, garantiram que aqueles criminosos, apesar da barbárie cometida, teriam o direito de falar num tribunal organizado com regras claras. Se tivéssemos repetido o arbítrio com os líderes nazistas, apenas provaríamos que nada se aprendeu.

Qual a opção capaz de evitar guerras e apta a construir uma sociedade democrática justa senão o diálogo? A maturidade (e mesmo a inteligência) mostra que, para uma vida saudável e em harmonia, um ponto de vista apenas não basta. É necessário tolerância com outras verdades, ainda que seja para discordar delas. 

Cancelamentos e lacrações prévias, cadeiradas, censuras, vaias que antecedem a manifestação e qualquer comportamento que impeça a veiculação de ideias nos distanciam dessa interlocução, sem a qual não há sociedade saudável.

José Roberto de Castro Neves é sócio do Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados.