Criado por Lula no início de seu primeiro mandato, o Ministério das Cidades trouxe muita esperança ao urbanismo brasileiro ao abraçar os princípios do Estatuto das Cidades, aprovado no final do governo FHC.
Mas seu quadro técnico inicial foi substituído por um quadro mais político, até que o Ministério foi extinto no Governo Bolsonaro, tornando-se uma secretaria do Ministério do Desenvolvimento Regional.
Em sua breve vida, o ministério legou ao País um grande programa de construção de casas, o Minha Casa Minha Vida – socialmente importante, mas que não possuía uma visão habitacional integrada com o desenvolvimento urbano.
O MCMV cometeu três erros essenciais: não se articulava com o transporte público de alta capacidade, ignorou a necessidade de se resgatar os centros das metrópoles, e tristemente não priorizava a faixa de renda mais vulnerável, a chamada faixa 1, que ia de 0 a 2 salários mínimos, justamente o perfil social mais frágil, mais sujeito à favelização e à precariedade habitacional.
Concebido após a crise de 2008, a função anticíclica do programa para a economia e para a construção civil foi inegável, criando empregos e empresas sólidas, inovações em tecnologias construtivas e gestão, a tal ponto que seu maior player, a MRV, hoje opera até nos EUA.
Com o fim do ministério, o programa foi rebatizado de Casa Verde e Amarela – novas cores (patrióticas), o mesmo desenho, mas nenhum empenho orçamentário.
A previsão para 2023 era de R$ 34 milhões, uma redução de 95% em relação aos R$ 665 milhões empenhados em 2022, também considerados insuficientes para tratar a intensa e veloz informalidade construtiva das nossas cidades.
O resultado das duas versões do programa foi o incremento do espraiamento dos territórios urbanos, levando à necessidade de mais e mais infraestrutura básica e de transporte.
Além disso, a busca das incorporadoras por terrenos mais baratos levou à valorização de áreas não preparadas para crescer, atraindo loteamentos clandestinos e exploração comercial por milicianos – uma informalidade que impede os municípios de arrecadar devidamente.
Como se não bastasse tudo isso, a nova geografia surgida graças ao MCMV aumentou ainda mais o tempo de deslocamento casa-trabalho.
E um efeito-colateral: a construção massiva em terrenos na periferia reduziu o interesse pelas áreas centrais das cidades, que viriam a ser castigadas pela pandemia e o avassalador trabalho remoto.
Em suma, o quadro da urbanização brasileira é preocupante e desafiador – periferias desumanas e áreas centrais fantasmas – sem falar nas mudanças climáticas e riscos ambientais.
Seria possível imaginar outros desenhos? Felizmente sim.
Novos arcabouços legais surgiram no mesmo período, trazendo oportunidades interessantes se bem trabalhadas.
Um Ministério das Metrópoles é urgente e necessário nessa corrida urbana de revezamento com bastão, e pode conseguir transformar as 27 gigantescas manchas urbanas onde vive metade da população, que anseia por dignidade no seu esforço cotidiano de invenção do Brasil.
Os novos marcos regulatórios criaram condições especiais. A Lei das Ferrovias oferece oportunidades para a ampliação do transporte sobre trilhos; um novo marco do saneamento trouxe a esperança de mudarmos o quadro de apenas metade dos brasileiros com tratamento de água e esgoto; e a REURB acelera os trâmites burocráticos de regularização fundiária, dando a milhões de brasileiros a propriedade sobre seu lar.
Podem parecer institutos legais estanques mas, se bem integrados, estes três instrumentos podem resolver o quebra-cabeça territorial brasileiro, que ainda sujeita crianças ao esgoto, os pais aos deslocamentos diários desoladores, e famílias inteiras à favelização infinita.
Melhor ainda, o País já tem um Estatuto da Metrópole desde 2015, com a aprovação da Lei 13.089. Ou seja, há um cenário auspicioso de novo modelo de governança territorial. O País avança por meios tortuosos. “Enxergar, no meio do inferno, o que não é inferno, e fazê-lo crescer,” sugere Italo Calvino em Cidades Invisíveis.
O momento é agora.
Tal chave está prioritariamente nas mãos dos novos ou re-empossados governadores em função da gestão das regiões metropolitanas.
Caberá à administração federal orquestrar planos de desenvolvimento urbanísticos e habitacionais integrados com os governos estaduais, trazendo as prefeituras a reboque.
Estes planos podem atrair investimentos privados dado o potencial de concessão dos novos marcos. Aliando-se qualidade técnica pública e privada, é factível tanto ampliar os estoques habitacionais, assegurando inclusão social, como misturar rendas com espaços e serviços públicos, com infraestrutura básica e transporte sobre trilhos.
O risco de se atuar apenas com os municípios é de pulverizar tais recursos nas mãos de prefeitos de olho apenas em 2024, perdendo-se a visão metropolitana. A população vive em conurbações complexas, valendo-se de emprego em uma cidade, residindo em outra e recebendo serviços numa terceira. Entender a periferia significa encarar este desafio de formulação de políticas públicas urbanas.
Bem organizado, todo mundo se beneficiará, os prefeitos inclusive. A visão deve ser racional: permitir que a mobilidade sobre trilhos de alcance metropolitano se amplie, por meio da oferta de operações urbanas holísticas, ou seja, masterplans que articulem adensamento de moradia em contextos bem servidos por infra, com amenidades cívicas e ambientais.
Para tanto, o uso do solo municipal deverá obedecer à diretriz metropolitana dada pelo governo estadual e articulada com o federal, e não o contrário. Isto não fere o princípio municipalista, apenas o induz politicamente a alinhar-se com um plano estratégico de investimentos públicos e privados, como fez o MCMV, que entretanto não trouxe em seu bojo outras ofertas para as cidades que não fosse apenas a construção de moradias.
Se até o meio do século 21, conseguirmos sair do modelo vigente de periferias desordenadas e violentas, sem presença de Estado, e ao mesmo tempo ordenarmos nossas metrópoles, repovoando os centros históricos, combatendo vazios, reduzindo o custo de novas infraestruturas, alcançaremos equilíbrio fiscal para as cidades, que assim poderão investir mais em saúde, educação e cultura.
Um MCMV 2.0 orientado e executado por um ministério de escala e visão metropolitana seria uma matriz geradora de bom urbanismo.
Aprendendo a crescer para dentro nas regiões metropolitanas, fortaleceremos nossa cultura, suas festas lindas e carnavais fabulosos nas – então recuperadas – ruas das nossas cidades.
Washington Fajardo é arquiteto urbanista e ex-Secretário de Planejamento Urbano do Rio de Janeiro.