O debate econômico nacional tem sido amplamente mobilizado em torno do objetivo de equilibrar as contas públicas. Isso é positivo, pois interessa a toda a sociedade ter a economia em ordem. Não há quem goste de inflação elevada, e a maioria da população quer se ver longe de juros altos.
Todos sabem que quem se endivida demais pode “quebrar”, mas isso vale para a sociedade em geral, pois o Estado desfruta de uma prerrogativa peculiar. No limite, o Poder Público pode imprimir dinheiro para quitar suas dívidas. Mas como não existe mágica, o resultado disso é a inflação. O Brasil conhece bem essa história.
Para evitar essa cilada inflacionária, a saída é fazer o dever de casa, ou seja, equilibrar o orçamento. Para isso há basicamente três caminhos: arrecadar mais, gastar menos, ou combinar as duas medidas.
A agenda de recuperação de receitas, iniciada em 2023, tem sido bem-sucedida. Níveis recordes de arrecadação têm sido reiteradamente observados ao longo de 2024. Ocorre que não há como ampliar a tributação indefinidamente.
Além disso, observa-se que a despesa pública continua crescendo a passos largos, e isso praticamente neutraliza os ganhos de arrecadação obtidos até então. O que resta fazer, portanto, é controlar o gasto público.
É nesse contexto que as manchetes recentes foram dominadas pela discussão sobre “corte de gastos”, com enorme expectativa sobre o pacote de ajuste fiscal finalmente anunciado em 28 de novembro sob o rótulo Brasil Mais Forte.
A avaliação geral, porém, foi de que o pacote é tímido e insuficiente em face do tamanho do nosso desafio fiscal. Mas o propósito deste artigo não é o de criticá-lo, e sim de apontar um caminho alternativo, centrado em duas medidas estruturais de alto impacto, que dialogam diretamente com o objetivo de reduzir a rigidez orçamentária.
Uma delas é a desindexação de despesas obrigatórias frente ao valor do salário mínimo. Outra é a desvinculação de despesas em relação ao comportamento da receita. Nenhuma dessas medidas, porém, integrou o pacote formulado pelo governo.
Apresentei essas duas medidas com maiores detalhes em recente estudo intitulado “O Caminho do Equilíbrio: é preciso “cortar gastos”?. Neste artigo volto a abordá-las de forma simplificada, mas desta vez ao lado de uma boa nova no front político.
Já existe, agora, uma proposta de PEC que contempla as referidas medidas estruturais, como se verá mais adiante. Avancemos por partes, a começar pelo diagnóstico geral que fundamenta a reforma estrutural em foco neste artigo.
Panorama fiscal brasileiro
Em primeiro lugar, convém ter clareza de que a dívida pública do Brasil já é alta. Em 2023, alcançou 84,7% do PIB pelos critérios do FMI, que permite comparações internacionais. No mesmo período, a dívida média dos países emergentes foi de 69,4% do PIB. Nossa dívida é alta e tende a crescer ainda mais. Segundo projeções do FMI, a dívida pública brasileira deverá atingir 97,6% do PIB em 2029.
Em segundo lugar, deve-se reconhecer que nossa carga tributária também é elevada e parece ter encontrado seu ponto de resistência em torno de 32% do PIB desde o início do século 21. É difícil imaginar, portanto, que haveria margem para novos aumentos da carga, que ademais é alta em termos comparados.
Segundo a OCDE, a carga tributária bruta do Brasil foi de 33,3% do PIB em 2022. A da América da Latina, de 21,5% do PIB. Nos aproximamos da carga de países da OCDE, constituída predominantemente por países ricos, que foi de 34% do PIB em igual período.
Em terceiro lugar, não se deve perder de vista o quão proeminente é a despesa pública brasileira em termos comparativos. Segundo o FMI, o gasto público total no Brasil, incluindo juros, foi de 45,4% do PIB em 2023. Na América Latina, de 34,6% do PIB. Em economias emergentes, de 32,2% do PIB.
Como resumo da ópera, a situação fiscal brasileira é paradoxal. Tributamos mais que nossos pares comparáveis e ainda assim não produzimos superávits. Não há como desconsiderar, nesse contexto, a elevada magnitude do gasto público no País.
Disso não resulta que se deva implementar corte de gasto draconiano da noite para o dia. Isso é tecnicamente inexequível, socialmente indesejável e politicamente inviável.
A reforma estrutural proposta neste artigo respeita esse entendimento. Representa estratégia gradualista de reequilíbrio das contas públicas, com ênfase na desaceleração do ritmo de crescimento do gasto público.
Desindexação de despesas previdenciárias e assistenciais
A desindexação de despesas frente ao salário mínimo é medida essencial. Pode até ser postergada, a alto custo, mas tende a ser inevitável. Cabe explicar.
No orçamento federal, há quatro grandes despesas obrigatórias indexadas ao valor do salário mínimo. São elas, em ordem decrescente de valor: benefícios previdenciários do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), Benefícios de Prestação Continuada (BPC), seguro-desemprego e abono salarial. Juntas, essas rubricam somam R$ 1,1 trilhão em 2024, o que equivale a 53% do limite de despesas fixado pelo Novo Arcabouço Fiscal.
É evidente, portanto, a centralidade desse conjunto de despesas no orçamento. E é ilógico que permaneçam indexadas ao salário mínimo, por ao menos duas razões. A primeira, porque todo aumento do salário mínimo automaticamente se transforma em elevação de despesa pública (e a situação fiscal do País demanda que a despesa seja controlada, e não expandida). A segunda, porque salário mínimo é parâmetro concebido para reger o mercado de trabalho, e não benefícios previdenciários ou assistenciais.
Nessa esteira, cabe um esclarecimento importante. A proposta de desindexação em nada interfere no valor do salário mínimo. Promovida a desindexação, ao contrário, o salário mínimo poderia ser elevado sem ser constrangido por limitações orçamentárias. Sua política de valorização seria discutida de forma mais autônoma, com base em critérios socioeconômicos relacionados a ganhos de produtividade, por exemplo.
Por sua vez, os valores de benefícios previdenciários e assistenciais – no lugar de se serem corrigidos pelo valor do salário mínimo – passariam a ser definidos à luz da situação fiscal do país e do quadro atuarial do RGPS, que é cada vez mais preocupante.
A questão previdenciária, de fato, representa o maior desafio de médio e longo prazo para as contas públicas do País. Isso se explica pelo processo em curso de rápido envelhecimento populacional.
A proporção de idosos (60 anos ou mais) na população brasileira mais que quadruplicará ao longo do século 21 no Brasil. De acordo com o IBGE, essa proporção saltou de 8,7% (15,2 milhões), em 2000, para 15,6% (33 milhões) em 2023. Para 2070, a estimativa é de que corresponda a 37,8% (75,3 milhões) dos habitantes do País.
Em função desse fator demográfico, a despesa previdenciária inevitavelmente aumentará de forma persistente. Trata-se do chamado “crescimento vegetativo” dessa despesa, ou seja, da ampliação do quantitativo da população aposentada. O déficit previdenciário, consequentemente, se expandirá de forma crítica.
Atualmente, as despesas do RGPS são da ordem de 8% do PIB, e suas receitas de cerca de 6% do PIB. Disso decorre um déficit previdenciário próximo a 2% do PIB. No Brasil do futuro, essa situação se agravará. Enquanto as receitas desse regime previdenciário tendem a permanecer estacionadas em 6% do PIB, suas despesas caminham para um patamar da ordem de 16% do PIB até 2100.
A questão estratégica a ser respondida pelo País é: como financiaremos nosso déficit previdenciário crescente, que alcançará cerca de 10% do PIB ao final deste século? Mais dívida e mais tributação não parecem ser soluções viáveis. Vimos que ambas já são elevadas. Financiamento monetário, com volta da inflação alta, seria o maior dos males.
A indexação da despesa previdenciária ao salário mínimo só agrava esse processo, pois acelera o gasto público de forma insustentável. Ela turbina ainda mais o crescimento dessa despesa, que aumenta naturalmente vis-à-vis o processo de envelhecimento populacional. O mesmo efeito, diga-se de passagem, ocorre com o BPC, visto que 45% de sua despesa diz respeito ao público de idade avançada.
De acordo com projeções da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados (Conof), a desindexação de despesas do RGPS e do BPC frente ao salário mínimo poderia propiciar uma economia potencial da ordem de R$ 1,3 trilhão em 10 anos, caso esses benefícios fossem atualizados apenas pela inflação, a fim de lhes preservar o valor real. Isso em comparação a um cenário em que nada se faça, mantendo-se a regra atual de correção dos benefícios.
Desvinculação dos pisos da saúde e educação
A segunda medida estrutural consiste na desvinculação de despesas em relação ao comportamento da arrecadação. Esse tipo de vinculação atualmente se aplica aos recursos mínimos (“pisos”) da saúde e da educação. Incluo neste último caso a complementação da União ao Fundeb, que também se sujeita a aplicações mínimas.
Por sinal, é preciso ter em mente que, em se tratando de “pisos”, o que está em discussão são “valores mínimos”. Rever pisos, portanto, não se confunde com impor tetos. Havendo espaço fiscal, nada impede que sejam aportados recursos adicionais durante a elaboração dos orçamentos anuais.
Vale realçar ainda que a proposta de “desvincular” os três pisos supracitados em nada se confunde com “extingui-los”. O que se propõe revisar, tão somente, é a forma de atualização desses pisos ao longo do tempo. Mantê-los atrelados à receita certamente não é boa ideia.
A razão para isso é óbvia. Quando a coluna da despesa é “presa com um gancho” à coluna da receita, torna-se mais difícil gerar superávits, pois mais arrecadação inexoravelmente implica gastos maiores. Além disso, quando a despesa flutua ao sabor da arrecadação, o gasto público assume comportamento volátil, pró-cíclico e acrítico, pois passa a ser mecanicamente guiado e desacompanhado de critérios de desempenho.
Segundo estimativas da já citada Conof, a desvinculação dos pisos em relação à receita possibilitaria uma economia potencial da ordem de R$ 0,9 trilhão em 10 anos, caso passassem a ser atualizados pela inflação.
O fator democrático
Vimos que as estimativas de economia potencial apresentadas neste artigo, associadas às propostas de desindexação e desvinculação do gasto público, abrangem o período de 10 anos, sob a premissa de atualização de despesas apenas pela inflação.
Mas não seria melhor que cada Presidente da República recém-eleito tivesse a prerrogativa de sugerir diferentes critérios de atualização de despesas?
A resposta é sim. Em consonância com a abordagem da orçamentação de médio prazo, o ideal seria que tais critérios fossem periodicamente reavaliados. Esse é o “fator democrático” da reforma preconizada neste artigo.
Essa revisão ocorreria a partir de projeto de lei complementar de iniciativa do Chefe do Executivo, a ser apresentado no primeiro ano de seu mandato. A vigência de tais critérios alcançaria o primeiro ano do mandato subsequente, ou para além disso em caso de inércia.
Além de viabilizar correções de rotas à luz de prioridades governamentais renovadas, esses ciclos revisionais de médio prazo criariam um ambiente mais favorável à incorporação de aprendizados oriundos da atividade de avaliação de políticas públicas.
A PEC do Equilíbrio Fiscal
Não se desconsidera o fato de que as medidas propostas neste artigo são politicamente desafiadoras, controversas e, por vezes, encaradas como tabus ou anátemas. Os custos da inércia, todavia, tendem a superar os da mudança preventiva. Eventual desarranjo econômico-fiscal, seguido de descontrole inflacionário, requereria remédios mais amargos e impopulares que as medidas ora em discussão.
A margem para a inação, de fato, é cada vez menor. Evidência eloquente é a dinâmica de crescimento acelerado das despesas previdenciárias. Some-se a isso a necessidade de novos investimentos públicos com vistas ao enfrentamento da emergência climática em curso. O desafio fiscal do País, como um todo, é crítico e não se circunscreve à questão de governo. Trata-se de questão de Estado.
A boa notícia é que a reforma estrutural proposta neste artigo já se encontra contemplada por proposta de PEC de autoria dos deputados Kim Kataguiri, Júlio Lopes e Pedro Paulo, protocolada para coleta de assinaturas em 27 de novembro.
Além de desindexar e desvincular despesas, a PEC também limita supersalários e reduz renúncias tributárias, entre outras providências. Cabe registrar que tal proposta foi formulada com o suporte de consultores de Orçamento da Câmara dos Deputados, com destaque à participação de Dayson Almeida e Ricardo Volpe nesse processo.
De forma pragmática, a PEC em foco ainda propõe um Programa de Equilíbrio Fiscal Estrutural (PEFE) aplicável à União, com a previsão de que, de 2026 a 2031, despesas objeto de revisão sejam atualizadas apenas pela inflação. Em seu conjunto, a PEC resultaria em economia potencial estimada em R$ 1,1 trilhão no citado horizonte.
Note-se que essa etapa inicial do PEFE se encerra ao final do primeiro ano de um novo mandato presidencial, respeitando-se o fator democrático acima referido. De 2032 em diante, novos critérios de correção de despesas poderiam ser aplicados por iniciativa do Presidente empossado em 2031, e assim por diante a cada quatro anos.
A PEC do Equilíbrio Fiscal representa um caminho consistente para desatar o nó górdio das contas públicas no Brasil. Ela tem o potencial de reposicionar o País na direção de uma nova rota de crescimento sustentável, com recuperação do grau de investimento, queda de juros, controle da inflação e aumento da confiança na economia brasileira. Decisiva para manter as contas públicas em ordem, essa PEC favorece a conciliação entre responsabilidade fiscal e responsabilidade social. Isso é objetivo de todos.
Paulo Bijos é consultor de Orçamento da Câmara dos Deputados e doutorando em Ciência Política pela UnB.