Em 1771, o abade Dinouart publicou em Paris um livro que permanece muito atual, intitulado A arte de calar. Seus ensinamentos me parecem muito apropriados ao momento em que vivemos, tanto na política interna quanto na externa.

Dinouart nos oferece três grandes sabedorias: a primeira é saber ficar calado. A segunda é aprender a falar pouco e ter um discurso moderado. Por fim, a terceira é ‘saber falar muito, sem falar mal e sem falar demais.’

​No curso de sua viagem à China, o Presidente Lula colocou em questão sua sabedoria ao desrespeitar as três regras básicas que se aplicam tanto à política quanto à diplomacia.

​Sua visita à Argentina, em janeiro, foi importante porque retomava os contatos pessoais entre os presidentes dos dois maiores países da América do Sul, interrompidos por quatro anos no governo Bolsonaro. 

Mas ela foi ofuscada pela falta de um marketing político adequado, pois o que prevaleceu foi a discussão, gerada pela incontinência verbal do presidente brasileiro, sobre a criação de uma moeda única na região e um empréstimo para a exploração de petróleo na região argentina de Vaca Muerta. 

O mesmo ocorreu agora na visita à China, o principal parceiro comercial do Brasil e a nova superpotência global, ao lado dos EUA. O saldo da visita foi positivo. O comunicado conjunto, verdadeira carta de intenções com vistas à expansão do relacionamento entre os dois países em muitas áreas, em especial na ciência e tecnologia — onde a China hoje se destaca como um dos países mais avançados do mundo — foi igualmente ofuscado pela retórica presidencial. Uma retórica que pode — como foi — ser interpretada como antiamericana. 

A fala presidencial – sobre a responsabilidade da Ucrânia no conflito e que os EUA e os seus aliados na OTAN deveriam parar de incentivar o conflito com o fornecimento de armas –  torna mais difícil a viabilização da proposta de Lula para a criação de um grupo para conversar com Putin e Zelensky sobre a paz. Os arroubos verbais do presidente transformaram uma visita que poderia ter sido apresentada como um sucesso em um atrito desnecessário com Washington e Bruxelas, como reverberado pela mídia internacional e por declarações oficiais nas duas capitais. 

​Nesse particular, repetiu-se com Lula o que aconteceu com Bolsonaro. As declarações de Bolsonaro eram sistematicamente ignoradas, e o mundo anotava o que o Itamaraty dizia. 

Agora, começa a haver uma diferenciação entre as posições do governo brasileiro, representado pelo Itamaraty, como ocorreu no voto nas Nações Unidas, contrário à Rússia por condenar a invasão e a ocupação territorial e a retórica presidencial. 

As declarações antiamericanas prejudicam a própria ambição de Lula de querer ter um papel de maior visibilidade e influência em temas de interesse global e nas questões geopolíticas mais relevantes. A correção começou a ser feita no discurso lido no encontro com o presidente da Romênia nesta semana. Os próximos capítulos serão as viagens, no final da semana, a Portugal e Espanha, quando a retórica presidencial vai ser novamente testada.

​Parece haver um gradual esvaziamento do Itamaraty, como ficou evidenciado ao final da visita a Pequim, quando, na entrevista coletiva à imprensa, Lula foi representado por Aloísio Mercadante (o presidente do BNDES) e Fernando Haddad, e não pelo Ministro das Relações Exteriores. 

Espera-se que essa tendência seja contida e a Chancelaria possa recuperar seu papel central na formulação e execução da política externa, a fim de projetar os interesses nacionais sem partidarização e ideologização. Caso contrário, também a política externa poderá sofrer um processo de polarização e levar o governo a eleger um lado – seja no conflito na Ucrânia ou na confrontação dos EUA com a China – como gostaria o Partido dos Trabalhadores, contrariamente à tradição histórica de neutralidade brasileira.

​Apesar disso, até aqui não há evidência de que o Brasil esteja abandonando a posição de equidistância, tanto na guerra da Ucrânia quanto nas tensões entre Washington e Pequim, embora no encontro com o Ministro Mauro Vieira o chanceler russo Sergei Lavrov tenha agradecido a percepção do Brasil sobre a guerra, dizendo que as visões dos dois países são similares. 

Todas essas declarações não devem ter consequências práticas contra o Brasil, enquanto for mantida a posição de autonomia estratégica. O Brasil está em companhia de 127 países que não apoiam claramente qualquer dos lados, enquanto 52 países, compreendendo 15% da população mundial — o Ocidente e os países amigos — condenam o ataque russo à Ucrânia, e apenas 12 países apoiam a Rússia. Com relação à China, mais de 120 países da África, América Latina e Ásia têm o país asiático como principal parceiro e se recusam a tomar partido. 

Biden e o seu assessor de Segurança Nacional, Jack Sullivan, reconheceram essa condição e afirmaram que “os países não querem tomar partido e nós não queremos que eles escolham lado”.

Os interesses estratégicos do Brasil dependem de um bom relacionamento com China e EUA, e para isso o país, para sobreviver à divisão das atuais superpotências, deve manter uma política de equidistância tanto na questão da Ucrânia, quanto na confrontação dos EUA e China.

Rubens Barbosa foi embaixador do Brasil em Washington e Londres e hoje preside o Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE).  Este artigo foi publicado originalmente no Interesse Nacional