A regulamentação da preferência da Petrobras nos leilões do pré-sal volta a colocar os interesses da estatal de um lado e os do Tesouro do outro, evocando a velha questão que tensiona a relação entre o acionista controlador e sua controlada: “O que é bom para a Petrobras é bom para o Brasil?”

Nos próximos dias, o Governo deverá publicar um decreto especificando as regras para que a Petrobras exerça seu direito de preferência nos leilões do pré-sal.  A Lei da Partilha, aprovada pelo Governo Lula em 2010, obrigava a Petrobras a entrar em TODOS os consórcios com uma participação de pelo menos 30% — além de ser, necessariamente, a operadora única de todos os campos do pré-sal.

Isso exigia bilhões de dólares que a companhia simplesmente não tinha (e continua não tendo).

Com isto em mente, no ano passado um projeto de lei do Senador José Serra teve o bom senso de transformar a obrigação numa mero ‘direito de preferência’, deixando a Petrobras mais à vontade para disputar apenas os campos que lhe parecessem mais atraentes.

Agora que os leilões se aproximam, é hora de definir exatamente o que quer dizer este ‘direito de preferência.’

Para o Tesouro — que depende de leilões bem disputados para turbinar sua arrecadação — é aí que mora o perigo.  

De acordo com a lei de Serra, 30 dias antes da realização do leilão a Petrobras deverá se manifestar se irá ou não exercer sua preferência sobre os campos à venda.

No caso dela exercer a preferência, valem as regras da Lei da Partilha original: a Petrobras participaria com pelo menos 30% de um dos consórcios e seria a operadora do bloco. Se seu consórcio ganhar, ótimo, mas se perder, a lei obriga a estatal a migrar para o consórcio vencedor, com 30% de participação e, de novo, com o status de operadora.

Pode parecer que estas regras ‘de pai pra filho’ seriam do agrado da Petrobras, que mais uma vez recebeu uma deferência do legislador que nenhuma outra empresa mereceu.

Mas a estatal quer mais.

Segundo fontes familiarizadas com a negociação em curso — que envolve o Tesouro, o Ministério da Fazenda, as Minas e Energia e a Casa Civil — a Petrobras está propondo que ela possa exercer a preferência APÓS a realização dos leilões. Em outras palavras: apenas depois de conhecido o resultado da disputa, a Petrobras quer dizer se vai entrar ou não no consórcio vencedor, caso o seu tenha sido derrotado.

Este conceito de preferência desfigura o objetivo e fere o espírito da lei — e, na prática, ameaça a concorrência nos leilões.

Uma fonte do setor de energia diz que “se a Petrobras puder exercer a preferência depois que o leilão já tiver acontecido, os leilões vão acontecer na Avenida Chile [a sede da empresa], e a tendência vai ser de haver apenas um consórcio.  Todo mundo vai querer estar com a Petrobras, já que ela seria a vencedora de final em qualquer hipótese.” Neste cenário, os leilões acabariam sendo vencidos com o lance mínimo, privando o Tesouro de dezenas de bilhões de reais ao longo dos próximos anos. 

As empresas do setor, que se preparam para retomar investimentos na era pós-Dilma, estão irritadas com este cenário, e privadamente já falam em judicializar a questão se a Petrobras conseguir regulamentar a preferência de uma forma que não respeite o espírito da lei.

“A visão que existe dentro da empresa é que estamos tratando de um direito de preferência clássico, nada diferente do que existe no mundo,” disse uma fonte da estatal. Para a Petrobras, o direito de preferência só deverá ser declarado depois que a empresa conhecer o preço ofertado pelo consórcio vitorioso no leilão. “Se você exerce antes, você está assumindo um compromisso. E como você assume um compromisso que não depende da sua avaliação? Quem garante que não vão jogar o preço lá pra cima?”

O problema com esta argumentação é que ela vai contra a letra (e o espírito) da lei.

No artigo 4, a lei diz: “O Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), considerando o interesse nacional, oferecerá à Petrobras a preferência para ser operador dos blocos a serem contratados sob o regime de partilha de produção.” O parágrafo em seguida não deixa dúvida sobre a cronologia: “A Petrobras deverá manifestar-se sobre o direito de preferência em cada um dos blocos ofertados, no prazo de até 30 (trinta) dias a partir da comunicação pelo CNPE, apresentando suas justificativas.”  Ou seja: tudo acontece antes do leilão.

Diz a fonte da Petrobras:  “A palavra final é da União, mas a Petrobras acha que você terá um leilão muito mais competitivo se o direito for exercido a preços de mercado.”

Para gente do setor, o que está por trás dessa interpretação heterodoxa da lei é simples: o caixa da Petrobras continua baixo, e a empresa quer maximizá-lo arbitrando as regras da preferência.

“Como a Petrobras está sem flexibilidade financeira, caso ela exerça a preferência antes — como a lei manda — a tendência será sempre ela ofertar o lance mínimo com seus parceiros. Nesse caso, se outro consórcio com maior capacidade financeira der um lance maior, ela seria obrigada a entrar nele, comprometendo-se num montante indesejável para ela. Ou seja, a Petrobras só vai investir se os valores finais forem baixos.” 

Diz outra fonte:  “Se a preferência for regulamentada do jeito que a Petrobras quer, até o resultado do leilão todo mundo vai ficar na dúvida se ela vai entrar ou não no consórcio vencedor. Por isso, em vez de criar outros consórcios, as empresas vão preferir negociar direto com a Petrobras, o que aumenta a chance dos leilões destes campos sair no lance mínimo.”

“Antes [com a lei da Partilha original] a Petrobras tinha apenas obrigatoriedade de participar.  A lei do Serra injetou preferência na equação, mas manteve obrigatoriedade nos casos em que ela exercer a preferência. Agora, ela quer só a preferência, sem nenhuma obrigatoriedade.”

Não é a primeira — e fatalmente não será a última — que os interesses da Petrobras estão de um lado, e os do Tesouro, de outro. Os dois lados ainda têm que se acertar sobre quem tem a pagar e quem tem a receber no caso da cessão onerosa e, mais tarde, da extensão da cessão onerosa.

Como em todos estes casos a Petrobras tem sabido defender seus interesses com competência, o mais provável é que a Viúva — ‘o meu, o seu, o nosso’ — tenha que bancar mais essa.