Uma bomba de sucção poderosa está atuando na economia brasileira, drenando bilhões de reais que antes alimentavam o consumo popular e causando deslocamentos até nas igrejas evangélicas e no mundo da publicidade.

Bem-vindo à economia das apostas online – cujos clientes já são 7 vezes mais numerosos que os investidores na Bolsa. (Ouviu isso, Barsi?)

Impulsionada por aplicativos de celulares, a jogatina digital incendiou o País e hoje consome uma parcela crescente do orçamento dos brasileiros – principalmente entre os mais humildes e beneficiários do Bolsa Família.

É impossível afirmar com precisão o total gasto pelos brasileiros com as apostas online, mas uma estimativa do Itaú indica que o valor total desembolsado passe de R$ 68 bilhões ao ano.

Para chegar a esse número, o Itaú usou os dados das contas externas brasileiras – isso porque, em tese, essas empresas nem deveriam estar funcionando por aqui.

Uma lei de 2018, ainda no Governo Temer, autorizou os sites de apostas online – mas a regulação só foi aprovada no final do ano passado e ainda está em fase de implementação. A partir de 2025, as empresas precisarão de autorização da Fazenda para atuar no Brasil – e, obviamente, recolherem impostos.

Para fazer as estimativas, os analistas do time de macroeconomia do Itaú usaram dados da balança de pagamentos divulgados pelo Banco Central.

Os gastos dos brasileiros com as taxas de serviços para os prestadores estrangeiros dos serviços de apostas mais o valor para compor o prêmio somaram uma transferência total de R$ 68,2 bilhões. Já os prêmios recebidos teriam sido de R$ 44,3 bilhões.

O saldo líquido de R$ 23,9 bilhões entre gastos e ganhos equivale a 0,2% do PIB e a 1,9% da massa salarial, calcula o Itaú.

Os analistas do banco também fizeram um cálculo alternativo, levando em conta as estimativas dos gastos com marketing feitos pelo setor de apostas – um valor que deve ficar entre R$ 5,8 bi e R$ 8,8 bi.

Usando como referência os números de outros países, o Itaú concluiu que a receita das empresas de apostas no Brasil fique entre R$ 8 bilhões e R$ 20 bilhões ao ano, com um valor mediano de R$ 12 bilhões.

Um dos objetivos do relatório foi avaliar se existe um impacto relevante do dinheiro das apostas no desempenho do setor varejista do País.

“Nossos modelos não apoiam essa hipótese,” escrevem Luiz Cherman e Pedro Duarte, da equipe de macroeconomia do banco. “As vendas do varejo têm apresentado resultados dentro do esperado. Não identificamos aumento no erro de projeção com base nas variáveis macroeconômicas.”

Empresários do varejo, no entanto, discordam dessa conclusão – e dizem que os números do Itaú podem estar subestimados porque, além das apostas esportivas, existe o cassino eletrônico dos jogos de azar, como o Fortune Tiger – o popular ‘Jogo do Tigrinho.’ Privadamente, varejistas citam estudos próprios que colocam o mercado de apostas entre R$ 60 bi e R$ 100 bi.

Notando que as vendas em seus mercados ainda não retornaram ao nível pré-pandemia, o CEO do Assaí, Belmiro Gomes, disse ao Brazil Journal que, em pesquisas feitas pelo atacarejo, muitos clientes relataram o aumento do gasto com apostas e jogos online, e disseram que isto os levou a reduzir as despesas em outras áreas de consumo.

Não são apenas as gôndolas dos supermercados que foram impactadas pelas bets e pelo tigrinho.

A adrenalina das apostas tem causado mais interesse do que a adrenalina da Bolsa — e olha que não tem faltado emoção ao mercado financeiro brasileiro.

Segundo os dados da mais recente edição do Raio-X do Investidor Brasileiro, publicado anualmente pela Anbima, 22,4 milhões de brasileiros fizeram algum tipo de aposta online em 2023, um número equivalente a 14% da população. É um percentual superior ao de pessoas que possuem aplicações, como títulos, fundos de investimento ou planos de previdência.

Apenas 2% dos brasileiros investem em ações – ou seja, para cada brasileiro com aplicação direta na Bolsa há sete que ‘aplicam’ nas bets esportivas e no tigrinho.

Outro setor que está sofrendo: a indústria da fé.

Igrejas evangélicas têm reclamado da queda nas doações, com muitos pastores relatando que a queda tem a ver com o crescimento das apostas.

Uma parte do dinheiro tragado pelas apostas é bancada pelos recursos dos programas sociais.

Segundo uma pesquisa do Datafolha no início do ano, 17% dos beneficiários do Bolsa Família disseram já ter feito apostas online – um percentual ligeiramente acima da população em geral, de 15%.

Ainda segundo a pesquisa, quase um terço das pessoas que recebem o Bolsa Família mantêm gastos com apostas ao redor de R$ 100 por mês. O hábito de apostar é mais frequente entre jovens e homens.

Enquanto a regulamentação permanece numa zona cinzenta, as bets vão se multiplicando – como fica evidente na publicidade. Os sites estão invadindo o espaço antes ocupado por anunciantes tradicionais.

“Ao contrário da Espanha, aqui não tem restrição para patrocínio de times de futebol,” disse o sócio de um banco na Faria Lima. “Não tem controle da publicidade. Meu filho pequeno vê propaganda de bet em programa de TV às 10h da manhã, mas anúncio de biscoito é proibido.”

Com relação aos jogos de azar, como o Tigrinho e o Mines, o Ministério da Fazenda acabou de publicar uma portaria com algumas regulamentações.

As operadoras terão que se credenciar e obter uma autorização. Também terão que distribuir pelo menos 85% do que foi obtido nas apostas – ou seja, o chamado “return to player” (RTP) será de no mínimo 85%. Os 15% restantes são o lucro.

Levando em conta as estimativas do Itaú para gastos totais e prêmios recebidos, o RTP tem sido bem menor, em torno de 65%.

Mas muita gente está cética quanto ao enforcement, já que muitas empresas estão baseadas lá fora, mas seus sites estão disponíveis no Brasil.

“Vamos ter um enorme problema com essa regulação frouxa das bets,” diz um executivo de um banco. “Não temos a regulação nem o aparato de fiscalização necessário pronto para esse rápido crescimento das bets no Brasil.”

O número de bets atuando no País pulou de 26 para 217 nos últimos três anos, segundo dados da plataforma Datahub citados no Estadão.

“É difícil calcular qual o impacto real na economia, mas precisamos fazer essa conta,” disse Belmiro, do Assaí. “Em breve, isso também vai se tornar uma questão de saúde pública.”

Já se tornou.

Segundo o Estadão, jovens com menos de 30 anos já somam 36,3% dos pacientes atendidos por dependência em apostas no Hospital das Clínicas de São Paulo. O aumento do número de pessoas da Geração Z viciadas em jogos vem chamando a atenção do Programa Ambulatorial do Jogo (Pro-Amjo), vinculado ao Instituto de Psiquiatria do HC. 

“Para especialistas, a falta de fiscalização da publicidade abusiva e a ampliação do setor de apostas no País impulsionam o problema,” relata o Estadão

“Hoje vemos jovens de 20 e poucos anos muito endividados, contraindo dívidas e de uma maneira rápida,” Maria Paula Magalhães, uma psicóloga especialista em Transtorno do Jogo no Pro-Amjo, disse ao jornal. Para ela, “a instantaneidade das apostas e a relação das bets com esportes contribuem no processo de vício.”

Os jogos em caça-níqueis e roletas físicas continuam proibidas no Brasil. Por enquanto, jogatina legal só no mundo digital.

Mas isso também poderá mudar em breve, com a aprovação do PL dos Jogos de Azar.

Seja na roleta do day trade ou nas bets digitais, não vão faltar maneiras de o brasileiro perder dinheiro.

 

Na ilustração acima, “Saturno devorando seu filho,” de Francisco Goya (1746-1828).  E o Jogo do Tigrinho.