Como muitos sabem, trabalho com saúde desde 1986 – período no qual fui vendedor de seguros e construí e vendi duas empresas.
Hoje fora do jogo, tenho pelo menos o benefício da experiência: conheci as entranhas da saúde suplementar, seus acertos e distorções, e vivenciei no dia a dia os incentivos de todos os envolvidos neste ecossistema complexo e delicado.
Escrevi este artigo para compartilhar com a sociedade – das empresas aos reguladores, passando pelos formuladores de políticas públicas – um diagnóstico e algumas recomendações, mas o resumo é o seguinte: a situação atual é insustentável, e urge o País encontrar um novo paradigma para o setor.
Há algo profundamente errado num sistema onde os consumidores reclamam dos aumentos de preços sucessivos, da redução da rede médica credenciada e da obstrução de coberturas – ao mesmo tempo em que as operadoras de saúde (que prestam o serviço e assumem o risco total do negócio) fecham o ano de 2022 com R$ 12 bilhões de prejuízo operacional ante uma receita bruta de R$ 265 bilhões.
No Brasil, um plano de saúde é para poucos.
Em números redondos, 50,5 milhões de brasileiros têm planos de saúde, sendo 41,6 milhões em planos coletivos e os outros 8,9 milhões em planos individuais.
Como o Brasil tem 215 milhões de pessoas, significa dizer que (apenas) 4,14% da população tem acesso a um plano individual e 19,35%, a planos coletivos, totalizando 23,50% dos brasileiros com algum plano de saúde. Note-se ainda que historicamente esse número nunca passou de 25%.
Em outras palavras: não há acessibilidade nem democratização da saúde privada no Brasil, assim como não há perspectiva de que isso mude, ainda que o plano de saúde privado alterne entre o segundo e terceiro maior desejo do brasileiro, segundo o Datafolha.
Entendendo o problema
A busca por uma solução começa por entendermos por que o plano individual tem tão baixa disponibilidade e penetração:
Primeiro: há quase 20 anos as operadoras vêm parando de comercializá-los, com raríssimas exceções. Em 2004 entrou em vigor o Estatuto do Idoso, cujo ponto nevrálgico foi o veto a reajustes de preço a pessoas com mais de 59 anos, além da impossibilidade das operadoras cancelarem contratos individuais. Cereja no bolo: a Lei de 1998 retroagiu os novos direitos a quem já tinha plano de saúde antes da Lei. Coisas (só) do Brasil.
Segundo: ao parar de oferecer esses planos, as operadoras encomendaram o caos. As carteiras de planos individuais, já sub-tarifadas para os dias de hoje, nunca mais foram atuarialmente oxigenadas (com a entrada de novos clientes mais jovens e saudáveis, por exemplo), e a carteira (o estoque) de cliente envelheceu, fazendo os custos (sinistros) explodirem. É a antítese dos conceitos básicos de qualquer modalidade de seguro.
Terceiro: segundo as operadoras, desde 2000 os reajustes que a ANS concede a essas carteiras de planos individuais são subdimensionados e completamente descolados dos reais aumentos dos custos médico-hospitalares.
Ao longo dos últimos anos, as operadoras usaram um expediente para contornar a inviabilidade da comercialização dos planos individuais, com certo beneplácito da ANS. Foram os contratos empresariais com PME-MEI (Pequena e Média Empresa –Microempreendedor Individual), que permitem a uma pessoa física abrir sua “empresa” até mesmo pela internet, mesmo que ela nunca venha a existir de fato (só de direito), e celebrar um contrato “empresarial” com uma operadora, ainda que, por exemplo, ela tenha apenas 2 ou 3 pessoas.
Nesses casos, a operadora pode unilateralmente rescindir o contrato ou não renová-lo no seu aniversário anual – e ainda seguir a política de reajuste dos planos coletivos, não dos individuais.
Ou seja, na prática temos um sistema que inviabiliza a comercialização sustentável de planos individuais, em detrimento de se aumentar a base de potenciais consumidores.
A falta sistêmica de oferta de planos individuais deveria ser um alerta vermelho em Brasília e na ANS (novamente, apenas 4,14% da população tem um plano individual). Ora, por qual motivo uma empresa privada suspenderia uma linha de produtos se de fato auferisse lucros supostamente “estratosféricos”? Resposta: a conta simplesmente não fecha, e só se deteriora ano a ano. É jogo (ruim) jogado.
Há uma percepção equivocada na sociedade de que as operadoras de saúde são riquíssimas e abusam dos consumidores e até dos prestadores médicos. Elege-se um bode expiatório para justificar um sistema que está errado, vencido, cada vez mais caro, insustentável e inacessível, mesmo tendo apenas 25 anos de regulação.
Vamos aos números. Nos últimos nove anos (entre 2014 e 2022), o IPCA aumentou 70%, o CDI 113%, o IGP-M 115%, e o INPC, 71%. Já o reajuste mediano dos planos coletivos ficou em 350,47%, e o dos planos individuais autorizados pela ANS, 140,25%.
A confusão é total: consumidores querendo o menor índice possível, as operadoras o maior, nada fecha e todos são infelizes.
Se nada for feito, os planos individuais continuarão levando à quebra de muitas operadoras – 43% delas já têm sérios problemas econômicos e financeiros.
O rombo das operadoras em 2022 foi grande.
Em 2023, vai piorar.
Diversos fatores agravarão ainda mais a situação de solvência das pequenas e médias operadoras, aumentando a concentração do setor:
(1) a obrigação de incorporação de novos procedimentos e tecnologias médicas muito mais onerosas – algumas, milionárias – sem cálculo ou previsibilidade atuarial;
(2) a nova lei do rol de procedimentos médicos cobertos (taxativos & ilustrativos) que abriu o leque de cobertura a níveis imprevisíveis e imponderáveis do ponto de vista atuarial;
(3) novos medicamentos a custos estratosféricos, sem tabelamento ou protocolo médico algum;
(4) uma lei federal que aumentou o piso salarial de enfermagem, o que impactará fortemente o custo do setor;
(5) um julgamento em curso no STF sobre reajustes de faixa etária: se as operadoras “perderem,” poderão ter de reembolsar bilhões em retroatividade para os consumidores, marcando a quebradeira definitiva do setor por decreto;
(6) Há ainda 260 projetos de lei para reforma da regulação do setor, sempre contra as operadoras.
Além, claro, das já conhecidas fraudes e procedimentos desnecessários – sem nenhuma consequência administrativa ou criminal. Estima-se que as fraudes atinjam 35% de todos os procedimentos médicos realizados no País. Um indício: os reembolsos pagos pelas operadoras explodiram de R$ 6 bilhões em 2019 para R$ 11 bilhões em 2022.
Algumas fraudes envolvem, conjuntamente, consumidor, prestador médico, indústria farmacêutica e advogados – que vão à Justiça e obtêm liminares estapafúrdias, que se exaurem em si próprias após seu cumprimento, mas que inexoravelmente comporão o cálculo dos próximos reajustes, ou seja, no final, o consumidor pagará tudo.
Quantos procedimentos médicos, não raro de altíssima complexidade e milionários, são feitos sem a real necessidade médica? Não há um mecanismo médico que modere os conflitos – sequer o Estado tem essas informações, mas as contas virão – e como!
De fato, a fraude contra as operadoras já virou uma espécie de “sub-indústria” bilionária deste setor – ainda que, justiça seja feita, há também casos de operadoras pressionando hospitais de pequeno e médio porte.
Por fim há um aumento avassalador da judicialização, que não raro resulta em decisões exageradamente pró-consumidor – a despeito do contrato, da Lei, da ANS, das fraudes e até, excepcionalmente, de preceitos da própria medicina.
Basta uma declaração médica para um advogado impetrar uma liminar, e o sistema que pague, seja correto ou incorreto, justo ou injusto.
A bola de neve
Todos os problemas acima afetam consideravelmente a lucratividade das operadoras, para não dizer sua sobrevivência, além das suas despesas administrativas, comerciais, operacionais, tributárias e regulatórias. Esse cenário trágico deve se agravar mais, e cedo ou tarde, esta bomba explodirá no colo do Governo e da sociedade.
É deste cenário quase caótico que surgem os reajustes elevados nos planos coletivos, as negativas de atendimento e os cancelamentos unilaterais – tentativas desesperadas das operadoras de sobreviver, não de auferir lucros monumentais.
Mas os números mostram que nem essas práticas estão sendo eficazes, dificultando inclusive a manutenção dos consumidores que ainda conseguem a duras penas pagar um plano de saúde.
Não à toa os “downgrades” de categoria de plano explodiram, e as operadoras verticalizadas tiveram um crescimento vertiginoso, na contramão da história do setor, que cada vez mais se concentra em poucos grupos econômicos. Isso é péssimo para qualquer mercado. Hoje, 3 ou 4 grandes operadoras já concentram quase metade do setor.
O setor da saúde privada cresce muito mais na arrecadação de reais per capita do que em número absoluto de clientes: entre 2019 e 2022 o setor cresceu 9,2% em número de clientes em planos coletivos, e os preços dos coletivos, que representam 85% do mercado, aumentaram em média 99,8%.
Mesmo sendo uma espécie de “Geni” da sociedade, o setor devolve sim prestação de serviços. Em 2022 foram 1,5 bilhão de atendimentos médicos distribuídos em 235 milhões de consultas, 172 milhões de atendimentos ambulatoriais, 995 milhões de exames, 70 milhões de terapias e 7,7 milhões de internações hospitalares.
No ano passado, a saúde privada suplementar gastou R$ 4.100 per capita com a prestação de serviços médicos, enquanto o SUS gastou R$ 867 per capita nos mesmos serviços. Ou seja, a saúde privada custa quase 5 vezes mais que a pública, por “cabeça”. Ou o setor privado é muito perdulário ou o público é insuficiente (financeiramente).
Vendo a coisa por outro ângulo: para o setor público se igualar ao privado, ele teria que aumentar seu orçamento em “apenas” 5 vezes! A diferença é colossal, além de absolutamente impossível de ser bancada pelos cofres públicos a qualquer tempo.
O conserto necessário
Aumentar o acesso: dadas as conhecidas e históricas restrições financeiras do Estado brasileiro, aumentar o acesso à saúde privada aliviaria o ônus do Estado no provimento da saúde pública, que, apesar de altamente qualificada, sofre com problemas de gestão e limitações orçamentárias.
Segundo o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), o investimento em saúde pública caiu 64% nos últimos 11 anos. Ou seja, ou o SUS precisa de muito mais dinheiro, ou que mais pessoas migrem para saúde privada por opção própria.
O setor de saúde tem quatro pilares: (1) os planos de saúde; (2) os prestadores médicos (médicos, hospitais, laboratórios); (3) o consumidor, pessoa física ou jurídica; (4) a indústria farmacêutica.
O próprio Estado não deixa de ser um “player” deste mercado, ora no papel de regulador (ANS) ora no de prestador médico (SUS).
Entretanto, na Lei 9656/98, dos 4 players acima, apenas as operadoras são reguladas. Uma mesa de 4 pés não se sustenta em apenas numa – e esta é a situação da saúde suplementar.
Desde 1998 as operadoras são submetidas a nada menos que 466 resoluções normativas, fora as centenas de normas infralegais da ANS. No todo são mais de 1.000 normas. Tudo isso só sobre elas, ainda que todos os demais players da cadeia econômica influenciem nos custos da saúde suplementar, e inevitavelmente impactarão o preço final ao consumidor. Se regulação excessiva só de um lado resolvesse, o Brasil já teria o maior e melhor sistema de saúde privado do mundo. No entanto…
Ao que se sabe, não à toa, somente as operadoras fizeram o resultado geral negativo em 2022, até porque, como são as únicas reguladas, são obrigadas a constituir reservas, divulgar balanço etc.
Qualquer nova exigência legal que recaia (somente) sobre as operadoras, como preconiza o deputado relator do PL 7419/06, equivaleria a colocar mais peso sobre uma perna já fraturada. A mesa de 4 pernas vai ruir e, em meio ao caos, com certeza sobrará para o SUS.
No Brasil, o controle (ou o reajuste) de preços nunca foi sinal de eficiência, justiça econômica ou social, vide os pacotes econômicos da década de 80, onde qualquer reajuste era controlado pelo Estado. Isso simplesmente não funciona.
Assim como naquela época faltavam produtos nas prateleiras dos supermercados, hoje faltam planos de saúde individuais nas “prateleiras” das operadoras. E quem sofre é a população.
Como endereçar, então, toda essa problemática? A resposta é (A) ou se flexibiliza a atual regulamentação (draconiana e exclusiva) das operadoras – o que é menos provável dado serem a “Geni” do mercado, ou (B) o Estado terá que regular todos os entes econômicos dessa cadeia, sem exceções ou privilégios, com monitoramento e transparência sobre tudo e todos, colocando-os no mesmo “barramento legal” – a hipótese mais provável (e a melhor) na minha opinião.
Há uma enorme desproporção de poder entre os diversos players da saúde suplementar, e só o Estado pode atuar e regular todas as forças e interesses desalinhados. Ou, repito, flexibilize-se substancialmente a regulação das operadoras.
Ao longo dos últimos 25 anos, o mercado se acostumou a incorporar todos os problemas e distorções do setor num grande pacotão e repassá-lo integralmente ao consumidor final, inclusive as fraudes e ineficiências. Daí os excessivos e sucessivos reajustes, que, se nada de novo, ainda vão piorar.
Falta transparência, para além das operadoras, aos prestadores médico-hospitalares, à indústria farmacêutica (custos, tabelas, protocolos de atendimento médico etc) para que inúmeros novos indicadores médicos e econômicos estejam à luz do Poder Público. Transparência será o nome do jogo, mas ela tem que ser exigida de todos, não somente das operadoras. Do contrário, continuaremos na Torre de Babel.
Não se trata, ideológica ou politicamente, de pedir um Estado mínimo ou máximo, mas do Estado necessário, que hoje é absolutamente hipossuficiente e ineficiente, exceto na rígida regulação e fiscalização apenas das operadoras via ANS.
Por ora, só com o Estado regulando todos os 4 players é que alcançaremos maturidade e, mais adiante, a tão preconizada “auto regulação”. Não me refiro a financiamento ou subsídios públicos de qualquer natureza. Nada disso. É freio de arrumação mesmo para, paradoxalmente, liberar o mercado para seguir seu fluxo e atender a sociedade como um todo, e não somente menos de 25% dela.
José Seripieri Filho, o ‘Júnior’, fundou as empresas Qualicorp e QSaúde.