O maior sonho musical de Renato Borghetti quase foi, literalmente, por água abaixo.

À beira do Rio Guaíba, na cidade de Barra do Ribeiro, a sede da Fábrica de Gaiteiros foi tomada pelas águas devido às enchentes de maio. Dentro do prédio – uma ampla e sólida construção de dois andares, com 92 anos de idade, mais de 600 metros quadrados de área e que surgiu como fábrica de barcos – boa parte do maquinário e da matéria-prima (como madeira e papelão, que seriam utilizados para confeccionar novos instrumentos) ficaram submersos.

A perda, segundo Borghetti, ainda é impossível de avaliar. O nível da água no local chegou a 1m50cm.

Para piorar, a resolução do problema não se deu de maneira automática; e ainda se arrasta. A situação do local permanecia caótica em junho, tanto pelo fato de a água baixar lentamente quanto pela necessidade de limpar o local, arejar o ambiente e avaliar os estragos. 

Para completar, a tragédia na vida do músico ainda se refletiu em outros aspectos: sua agenda de shows e compromissos musicais precisou ser alterada e até a casa que ele mantém em Barra do Ribeiro, onde passa a maior parte do tempo, sofreu com o alagamento.

O nível das águas apenas não superou o otimismo de Borghetti. “Vai tudo voltar ao normal,” ele me disse.

E o “normal” é manter a Fábrica de Gaiteiros em atividade.

Empreendimento audacioso, a Fábrica foi criada há pouco mais de dez anos para ser a grande herança que o músico pretende deixar às novas gerações. Borghetti sempre soube disso – tanto que, pouco antes da inauguração, já previa: “Lá no futuro, um dia alguém vai perguntar por que tem tanto gaiteiro no Rio Grande do Sul”. E, de imediato, emendava a resposta. “É que houve um projeto chamado Fábrica de Gaiteiros, inventado por um cabeludo maluco”.

Há quase 50 anos Borghetti e a gaita-ponto estão ligados por uma relação que resiste a viagens e turnês pelos quatro cantos do mundo. O relacionamento começou como brincadeira, quando Renato tinha doze anos e ganhou de presente uma Hering de oito baixos (hoje em exposição na Fábrica).

Músico reconhecido há mais de quatro décadas, Borghetti cada vez mais volta os olhos para seu mais bem-sucedido projeto e faz questão de enfatizar seu interesse em valorizar gaitas e gaiteiros. “A intenção é fabricar gaiteiros, não gaitas. A produção dos instrumentos só existe para ajudar na formação dos jovens músicos,” diz.

A ideia começou a ganhar forma em 2010, em Guaíba, cidade vizinha a Porto Alegre, no lado oposto ao rio de mesmo nome. Foi lá que deram as primeiras aulas  numa escola estadual. Já de início, a primeira dificuldade: não havia instrumentos suficientes para as primeiras duas dezenas de alunos.

Na mesma época, Borghetti também se deu conta de que o Rio Grande do Sul, que chegou a ter 20, 30 fábricas de gaitas – muitas delas concentradas na região de colonização italiana – já não tinha mais nenhuma. Como um garoto iria se interessar pelo instrumento? E se viesse a se interessar, como poderia ampliar seu conhecimento, trocar informações com outros interessados?

Mais: a gaita-ponto, além de não ser um instrumento de atração imediata – principalmente se comparada a opções mais populares, como a guitarra, a bateria, o violão e o saxofone – também não é algo barato. Em média, pode custar até 10 vezes o preço de um violão, por exemplo.

Como no início do projeto a quantidade de alunos continuava sendo maior que a de instrumentos, a escola funcionava num sistema semelhante ao de uma biblioteca, em que cada aluno retirava seu instrumento, levava para casa para estudar e se comprometia a devolvê-lo em determinada data. Assim, o instrumento seria repassado a outro aluno.

Borghetti começou então a pensar na solução do problema apostando na fabricação de um protótipo, uma gaitinha de oito baixos que levaria seu nome. A largada foi tímida. Apenas um instrumento foi fabricado naquele período. No ano seguinte a situação melhorou, e ao final de 2011 já eram dezesseis as gaitas fabricadas sob sua orientação.

Na sede da Fábrica está guardada a Gaita Número 1. A Número 2 está na casa de Borghetti. A terceira teve um destino surpreendente: foi presenteada a Eric Clapton durante uma apresentação do guitarrista britânico em Porto Alegre.

A aposta deu certo. Músico com alma de luthier, Borghetti sempre foi curioso com relação às gaitas. Na década de 80, quando ainda existia a marca Universal, ele constantemente visitava a fábrica em Caxias do Sul para sugerir alterações e adaptações no instrumento.

Ainda hoje, Borghetti acompanha todas as etapas do processo de fabricação, atento aos detalhes da qualidade da madeira, do papelão, dos arames, dos botões e das palhetas. Conhecedor do trabalho artesanal, ele sabe que aos consertadores de gaita pode-se pedir tudo, menos que tenham pressa ou prazo. 

Além da curiosidade, há a dedicação. E a gaita exige carinho. Quando viaja, Borghetti nunca a despacha. 

Quando não está na estrada, Borghetti está na Fábrica de Gaiteiros, que hoje tem mais de 500 alunos entre 7 e 15 anos. Mesmo com a enchente, os alunos não perderam as aulas, já que o projeto se expandiu e hoje está em outras 24 localidades.

Apesar dos percalços, Borghetti acredita num futuro auspicioso. 

O prédio na Barra do Ribeiro não só será recuperado como vai ganhar um desdobramento. Borghetti acaba de adquirir duas casas geminadas em Porto Alegre. O lugar já está em obras – com o projeto desenvolvido pela filha, Emily – e deve ser inaugurado no segundo semestre do ano que vem.

“Com essa nova sede, teremos mais um espaço para formar mais gaiteiros”. E assim perpetuar seu trabalho pelos próximos 20, 50, 100 anos.