Aos 30 anos, o carioca Alan Duarte já teve dez familiares assassinados por arma de fogo. Nenhum homem da família teve uma ‘causa mortis’ diferente. A contabilidade macabra vai além: cem amigos mortos da mesma forma, 17 que sobreviveram à perfuração de balas, e outras sete pessoas encarceradas, entre familiares e amigos.
Na vida entre a pobreza, o tráfico de drogas, a bala perdida e o assalto, 70% dos brasileiros assassinados no país são homens negros, e entre 2006 e 2016 o número aumentou 23%.
Alan vive no Morro do Adeus, parte do Complexo do Alemão, um conjunto de favelas na Zona Norte do Rio onde cerca de 70 mil pessoas se espremem. Para evitar se tornar uma estatística, ele abraçou o boxe — e ainda levou mais de 250 jovens para o mesmo caminho com a ONG “Abraço Campeão”, que treina meninos e meninas de sete a 29 anos, além de dar aulas de desenvolvimento pessoal e cidadania.
Em seus quatro anos de existência, a ONG ganhou o apoio da Brazil Foundation, além de ter sua história contada pelo filme “The Good Fight”, premiado no TriBeCa Film Festival, em Nova York.
Para criar o Abraço Campeão, Alan replicou o modelo de outra ONG, a “Luta pela Paz”, da qual ele faz parte desde a adolescência. (A Luta nasceu no Complexo da Maré, outra favela carioca.)
Filho caçula de três irmãos, Alan foi o único que estudou. Durante as férias, visitava a avó na Maré e, aos 17 anos — a idade mais crítica — começou a praticar o esporte três vezes por semana, além de frequentar aulas de desenvolvimento pessoal e cidadania.
“Lembro de abrir o armário e só ver a camisa e o short da academia: eu vestia, e saía orgulhoso, porque era reconhecido quando passeava pela comunidade. Lembro de como aquela roupa da Nike e aquele tênis da Adidas me fizeram bem. Se não fosse daquela forma, talvez eu tivesse procurado outros meios de conseguir,” lembra ele. “Ao montar um ringue no meio da comunidade e colocar um menino para se apresentar e lutar, oferecemos a ele as mesmas coisas que o tráfico oferece, só que de uma forma legal: o status, o reconhecimento, uma identidade, e até respeito”.
Antes de se engajar no boxe, Alan entrava e saia da Maré em total anonimato. Até o dia em que pisou num ringue, no meio de tudo. A vida mudou. Ganhou novos amigos e, quando passava pelas ruelas e becos da comunidade, escutava um “Olha o lutador!”, ou um “Eu te vi! Você pegou o cara, muito maneiro!”
Alan saía da invisibilidade para ganhar uma identidade.
“Sem isso, um jovem acaba sendo ‘um ninguém’. Esta é a importância de uma organização que preenche esta lacuna com o esporte.” Ele sabe o que fala: passou a competir pelo Rio de Janeiro, pelo Brasil e chegou a lutar na África do Sul e na Inglaterra. No exterior, viu que há maneiras diferentes de fazer e de pensar.
“O boxe não é um esporte violento. As pessoas se agridem muito mais no dia-a-dia do que na luta. Todos os golpes que já tomei no ringue e no treino não são nada se comparados ao que já ouvi ao longo da vida,” diz.
“No boxe, temos dois atletas dispostos a fazer o seu melhor, dar o rosto para bater e obedecer as regras. Sempre falo para as crianças que o boxe é como jogar bola: você vai deixar de fazer gol só porque o seu adversário é seu amigo? Na luta é a mesma coisa, depois todo mundo continua amigo”, diz. “A mágica do boxe e das artes marciais é esta: preparar as crianças para as batalhas diárias, onde não há regras.”
A pior das mortes foi a de seu irmão Jackson. Oito anos mais velho que Alan, ele tinha 33 e era pai de 2 filhos. Não sabia ler nem escrever, mas era um porto seguro para o caçula. Era também uma figura paterna, já que Alan não fora criado pelo pai (que se separou de sua mãe quando ele era criança) e pouco via a mãe, que trabalhava como faxineira hospitalar boa parte do dia e da noite. (Alan trabalhava como mototáxi de madrugada, largava o expediente às cinco da manhã, mas esperava até as 6 para encontrar Jackson, que passava todo dia na esquina a caminho do trabalho.)
Na verdade, Jackson cumpria prisão em regime semi-aberto, operando como segurança de uma confecção de ternos e dormindo no presídio. Seis da manhã era a hora do encontro com Alan e com a mãe. Num destes dias, logo depois de se despedirem, Alan acelerou a moto, virou a esquina, e cem metros adiante escutou um tiro. Ao olhar para trás, viu o carro preto de onde veio o disparo, que acertou em cheio a cabeça do irmão. Dez dias mais tarde, a mãe e Alan colocaram as mãos no documento da prefeitura que liberava Jackson da cadeia: a data estava marcada para o dia de sua morte.
A perda foi a gota d’água. “Peguei três luvas de luta velhas, que iriam para o lixo, um saco de luta emprestado de um amigo, coloquei numa quadra de futebol do Complexo do Alemão e juntei a criançada que estava lá, todos os dias, faça sol, chuva ou tiroteio”.
Apesar do sucesso e da adesão das crianças, Alan continua trabalhando como professor na Luta pela Paz para garantir o salário, porque o Abraço Campeão ainda não arrecada recursos suficientes.
São necessários R$ 12 mil por mês para manter a engrenagem. Com esta quantia, ele pretende começar a pagar salários aos três treinadores – um de boxe, um de luta livre e um de karatê (este acaba de deixar a ONG porque conseguiu um emprego pago, mas os alunos aguardam uma nova contratação). Além disso, há um recepcionista, uma faxineira, uma auxiliar administrativa e um auxiliar operacional.
Os recursos de hoje se resumem a R$ 62 mil arrecadados ano passado pela campanha Abrace Brasil, promovido pela Brazil Foundation, metade dos quais vieram de um doador: Pierre Lacaze, da organização “Vivo à Beira”. A ONG também recebeu US$ 7.500 da Empower, uma fundação de Nova York que ajuda jovens em situação de risco.
O filho de Alan, Jackson, tem 6 anos. Alan confessa ser um pai pouco carinhoso: segundo ele, crescer na favela deixa as pessoas mais duras.
Mas ele ainda chora, várias noites, acordado sobre o colchão. (A cama ainda não deu para comprar.) Pensa nos alunos: sem roupa limpa, camas, alimentação ou alguém que lhes diga “você está bonito”, ou “parabéns pela nota boa.” Para Alan, fazer estas crianças se sentirem humanas é uma necessidade básica. “Os massacres às comunidades, às favelas, à nossa cidade e ao nosso país acabam estourando primeiro na mão delas.” Ainda assim, o pequeno Jackson, ao ver o pai chegar casa e desmaiar de cansaço, lhe abraça forte e diz: “eu te amo.”
Para ver o trailer do filme The Good Fight, clique aqui.
Se quiser doar diretamente ao Abraço Campeão (ou se tornar um apoiador mensal), use o site da Benfeitoria.