A posteridade tem sido generosa com Truman Capote –  bem diferente de seu final verdadeiro, em que, bêbado, esquecido e solitário, morreu abandonado por todos que ao longo da vida ele havia paparicado e ajudado a exaltar. 

Em sua hora derradeira, Capote estava hospedado na casa de Joanne Carson (a ex-mulher de Johnny Carson), sem nenhum dos antigos “amigos.”

A morte – de certa forma repentina – também impediu Capote de conquistar algo que perseguiu por toda a vida: ser para a sociedade e para a literatura americana o que Marcel Proust representou para a França. 

O americano jamais produziu algo semelhante a Em Busca do Tempo Perdido, mas não fez pouco: marcou de forma definitiva o cenário cultural e mundano dos Estados Unidos com uma obra relativamente curta – dividida entre romances, contos, ensaios, entrevistas, peças e canções. 

Mais: chamou a atenção para suas opiniões ferinas e desaforadas e para sua incrível capacidade de catalisar ódios e paixões. 

“Não sou tão inteligente, culto e sensível quanto Proust, mas meus olhos são tão bons quanto os dele. Se Proust fosse americano e vivesse hoje em Nova York, estaria fazendo isso,” disse certa vez. 

Agora, num balanço geral, os 40 anos de sua morte (em agosto) e os cem anos de seu nascimento (em setembro) permitem a conclusão de que tudo valeu a pena.

O exemplo mais recente desse renascimento está em Feud: Capote vs. The Swans, série criada por Ryan Murphy, baseada no best-seller Capote’s Women: A True Story of Love, Betrayal, and a Swan Song of an Era (2021) e que recupera o período em que Capote, depois de se tornar próximo de um círculo de socialites nova-iorquinas, apelidadas por ele de “cisnes”, registrou num projeto de livro (Answered Prayers) muitas das histórias privadas e picantes envolvendo as amigas. 

Depois que uma prévia da obra foi publicada pela revista Esquire, a amizade com elas acabou, e o autor foi banido da chamada alta sociedade.

Bem antes disso, com Capote ainda vivo, quem soube captar boa parte do que ele fez e pensou durante os 60 alucinantes anos que viveu foi o jornalista Gerald Clarke, ex-repórter especial da revista Time e autor da biografia que chegou às livrarias brasileiras no começo os anos 90. 

Capote: Uma Biografia é fruto de anos de pesquisa e entrevistas com centenas de amigos, quase amigos, ex-amigos e inimigos de Capote. “Nunca ouvi falar de uma pesquisa assim. Não quero ler, mas certamente esse cara sabe mais sobre mim do que qualquer outra pessoa, inclusive eu mesmo,” Capote disse quando soube que Clarke havia começado a fazer o livro.

Clarke começa em Nova Orleans, onde Capote nasceu, em setembro de 1924, e conta tudo sobre o menino filho de Arch Persons, um aventureiro que não parava em emprego algum e estava sempre atrás de dinheiro fácil, e de seu fugaz envolvimento com Lillie Mae, uma mulher bem mais nova e que também só pensava em dinheiro.

O casamento não deu certo desde o primeiro dia, e pequeno Truman passou a infância pulando de casa em casa de parentes. Na adolescência – já morando com o segundo marido da mãe, o cubano Joe Capote que lhe deu o sobrenome – descobriu Manhattan.

Cativante, bom dançarino e com uma conversa capaz de convencer uma cascavel a renunciar a seu chocalho, Capote virou um must e colecionou uma lista infindável de amigos –  o who’s who da sociedade nova-iorquina – de Vanderbilts e O’Neills a Guinness e Bouviers, todos encantados com aquele enfant terrible.

Precoce em tudo, Capote conseguiu seu primeiro emprego como office-boy da New Yorker aos 16 anos. Chamou atenção mais pela voz e os trejeitos exageradamente afeminados do que pelos seus escritos, que só seriam notados dois anos depois quando a revista Mademoiselle publicou o conto Miriam.

Sem nenhum livro editado, mesmo assim foi saudado como o escritor revelação de 1946. 

Seus passos rumo ao caminho proustiano começaram com a publicação de Other Voices, Other Rooms, mas o interesse maior foi despertado pela lânguida foto de Capote na contracapa. 

Não parou mais. Emplacou entrevistas, perfis – alguns históricos como os de Marlon Brando e Marilyn Monroe – roteiros para filmes e peças, e uma pequena obra-prima, Bonequinha de Luxo, criando Holly Golightly, uma espécie de irmã espiritual de Sally Bowles de Adeus a Berlim, de Christopher Isherwood.

Capote chegou ao ápice com A Sangue Frio, o retrato brutal do assassinato de uma família de Kansas por dois rapazes. 

Para produzir o livro, mergulhou por seis anos no caso, mudou-se para a cidade onde a família vivia, conheceu e ficou amigo dos assassinos e escreveu um livro diferente de tudo o que já havia feito. Inaugurou o new journalism, mas a partir daí passou a se preocupar mais em trocar alfinetadas com possíveis seguidores – Norman Mailer e Gore Vidal, principalmente – do que em escrever.

Entrou numa roda-viva. Viajava por todo o mundo, frequentava festas em Veneza, Paris, Londres e Nova York (onde organizou o fantástico baile de máscaras do Hotel Plaza), se drogava e bebia hectolitros de vodca e martini. 

O Truman Capote dos anos 70-80 seria mais lembrado como figura pública do que como escritor. Era o personagem das grandes festas, dos escândalos, dos porres, das noites loucas no Studio 54. Era o menino prodígio que havia se transformado num gordo bêbado e decadente, inconveniente com quem o cercava e ingrato com quem ele havia sido próximo. 

Como já estava milionário e com seu nome inscrito há mais de uma década na história da literatura e do jornalismo, desde a publicação de A Sangue Frio Capote podia dar-se ao luxo de apenas sinalizar o que viria a ser seu próximo livro, o inacabado Answered Prayers.

De madrugada, sentava-se à máquina e escrevia, alardeando que estava concluindo a obra. Ficou só na promessa e em alguns capítulos publicados na Esquire.

Um deles, La Cote Basque, o indispôs com todos que o cercavam por expor com crueza e maldade todas as mazelas do high society internacional. Não era literatura, era fofoca, e foi o suficiente para que todos o abandonassem. 

Com o fracasso de de Answered Prayers, Capote escreveu Música para Camaleões como uma prestação de contas aos leitores. Nunca se soube se Capote se sentiu pressionado ou se havia esgotado sua capacidade de interpretar (maldosamente) a vida cotidiana dos Estados Unidos.

Se em A Sangue Frio Capote preconizava a observação distante, em Música para Camaleões ele se colocava no centro dos acontecimentos. Narrador e protagonista das histórias, algumas delas apenas trechos de diálogos, Capote muitas vezes apenas reproduzia conversas travadas com amigos e conhecidos.

Música para Camaleões é também o livro mais reflexivo do autor. Ao mesmo tempo que acenava com a conclusão de Answered Prayers, Capote fazia um balanço da sua vida e obra. E constatava: “A escrita é um ato nobre, mas impiedoso. Deus, quando nos dá um talento, também nos entrega um chicote, a ser usado especialmente na autoflagelação.” 

Capote, sem saber, fazia o seu testamento.