O recém aprovado mega-pacote de gastos públicos do governo Biden trouxe de volta o debate sobre a possibilidade do fim da longa queda das expectativas de inflação e dos juros nos Estados Unidos. Vários economistas experientes notaram o possível impacto inflacionário do US$ 1,9 trilhão de estímulos fiscais que, somada ao aumento de gastos na saída da pandemia, elevará a taxa de crescimento americana a 6,5% em 2021 segundo a OCDE.
Essa discussão sobre o futuro da inflação e dos juros nos Estados Unidos é claramente relevante. Principalmente porque este aumento do gasto público deverá ser amplificado mais à frente por um pacote ainda maior de gastos em infraestrutura já em elaboração pelo novo governo. Isto muda completamente o ambiente fiscal em que o Fed operou nos últimos anos. Entretanto, ainda existe um arraigado otimismo dos mercados sobre a capacidade da política monetária manter a sólida ancoragem das expectativas inflacionárias.
O gráfico abaixo permite entender esse consenso otimista: ignorando os soluços de várias e severas crises, os últimos 40 anos são marcados por uma tendência inexorável da queda da taxa de juros – medido pelo rendimento (yield) de bonds do Tesouro americano de 10 anos. São décadas de contínua desinflação e crescente independência dos bancos centrais para gerir o fine tuning das políticas de inflation targeting. Por que o novo normal haveria de mudar?
Em primeiro lugar, porque o mundo não foi sempre assim. Como o gráfico também mostra, antes de começar a cair no início dos anos 80, a inflação e os juros haviam subido continuamente por décadas. Nesse período, as políticas macroeconômicas foram em grande parte conduzidas por políticos e economistas que viveram os horrores da Grande Depressão e suas consequências e, como Keynes mostrou ser possível, implementaram políticas fiscais ativas que quase permanentemente elevavam o nível de emprego a níveis além do equilíbrio não inflacionário. Por outro lado, o poder dos sindicatos e a crescente oligopolização da estrutura industrial acabou por diminuir a eficácia desinflacionária da política monetária para reduzir e ancorar as expectativas inflacionárias, levando erradamente à adoção de políticas de controle de salários e preços em resposta a choques inesperados, como os dois gigantescos choques de preço do petróleo nos anos 70.
Com a inflação chegando a dois dígitos nos EUA depois do segundo choque do petróleo em 1979, estas políticas foram abandonadas quase ao mesmo tempo dos dois lados do Atlântico no renascimento conservador do início dos anos 80, simbolizado pela gestão da dupla Volcker-Greenspan no Fed. A partir daí, a nova política macroeconômica passou a ser marcada pela supremacia do uso da política monetária como instrumento principal de gerência de demanda, primeiro com o tratamento de choque de Volcker para reverter a longa trajetória de inflação crescente, depois com a nova ortodoxia do inflation targeting, conduzida com ampla independência dos bancos centrais. O sucesso dessas políticas em ancorar as expectativas inflacionárias foi impressionante.
Mas tal como o insucesso da ortodoxia keynesiana antes de 1980, o sucesso destas políticas não pode ser explicado apenas pela política monetária, que não opera em um vácuo. Não podemos ignorar que sua eficácia deve-se em larga medida – como mostrado por Charles Goodhart e Manoj Pradhan em seu recente livro “The Great Demographic Reversal” – ao fato de que elas operavam sob o efeito cumulativo de forças desinflacionárias resultantes de dois fenômenos econômicos globais ocorridos neste período.
Em primeiro lugar, a transferência de parte substancial da capacidade industrial global de empresas dos EUA e da Europa Ocidental para áreas de salários reais muito mais baixos – como o leste da Europa, o sudeste da Ásia e principalmente, a China – o que foi possibilitado pela liberalização comercial e de investimentos diretos.
Em segundo, o aumento da taxa de participação da população em idade de trabalhar na população total ocorrida nas economias ocidentais com a chegada dos baby boomers ao mercado de trabalho e do grande crescimento da participação feminina.
Entretanto, como argumentam os autores, essas tendências desinflacionárias estão se revertendo. A queda nos diferenciais de salário industriais entre os Estados Unidos e os produtores periféricos foi dramática – a relação entre o salário médio americano e chinês caiu de 35 para 5 vezes desde 2000 – e o aumento recente de políticas anti-imigração e protecionistas são um sinal de que a globalização pode passar a jogar um papel menor no processo desinflacionário.
Por outro lado, a redução do crescimento relativo da população jovem não só reduziu o crescimento da oferta de mão de obra, como se vê no Gráfico 2, abaixo, e já vem causando um rápido envelhecimento da população. Ou seja o “bônus desinflacionário” das tendências demográficas das últimas quatro décadas também estaria se esgotando.
O rápido envelhecimento da população americana terá também dramático efeito fiscal. Com o choque dos gastos emergenciais com a pandemia e mantida a atual política tributária herdada da administração Trump, esse desequilíbrio fiscal de longo prazo causará crescimento explosivo da dívida pública, como mostrado no Gráfico 3, abaixo.
Apesar dessas nuvens no horizonte, o cenário de curto prazo não é muito preocupante. Como o impulso fiscal do pacote de infraestrutura deve ser sentido apenas depois da expansão esperada na saída da pandemia, o Fed pode ser mais leniente no curto prazo em relação a aumentos pequenos da inflação, contribuindo para reduzir o valor real da montanha de dívida pública e corporativa dos EUA. A mudança do Fed no ano passado para um regime de ‘average inflation targeting’ ajuda nesse aspecto, permitindo compensar o período de inflação abaixo da meta dos últimos anos com um de inflação acima da meta por algum tempo sem quebrar as regras.
Entretanto, nos próximos meses, as expectativas inflacionárias nos Estados Unidos podem mudar dependendo da percepção dos mercados sobre o impacto de outro importante projeto do governo Biden: um ambicioso projeto de reforma da infraestrutura.
Essa incerteza cria um cenário binário para o futuro das taxas de juros.
Uma aceleração unilateral do crescimento americano é perigosa porque, como os Estados Unidos já não são mais a locomotiva da economia mundial, um aumento significativo do diferencial de crescimento em relação aos seus maiores parceiros comerciais colocaria o dólar sob pressão, geraria expectativas de maior inflação e forçaria as autoridades monetárias americanas a acelerar o ritmo de redução de liquidez para evitar uma rápida desancoragem de expectativas. Este primeiro cenário poderia levar a taxa de juros a níveis ainda mais altos do que no chamado ‘taper tantrum’ de 2013.
O segundo cenário é virtuoso, mas depende da habilidade diplomática do governo Biden em complementar sua arrojada ação fiscal na arena doméstica com iniciativas de diplomacia econômica que incentivem políticas também expansionistas de seus parceiros, especialmente na Europa, no Japão e na China, e promovam o aprofundamento da globalização. Se bem-sucedida, permitiria maior crescimento da economia mundial e minimizaria as expectativas de pressões sobre as taxas de juros americanas.
Assim, uma saída virtuosa não é impossível. O problema é estimar quanto seria este “algum tempo” que os mercados dariam aos policymakers antes de reagirem forçando o aumento dos juros. Portanto, é muito provável que nos próximos meses o Fed tenha que lutar para não perder sua credibilidade quase mítica, consolidada pelas respostas altamente bem-sucedidas às crises de 2008-09 e à pandemia, na medida em que sua independência começar a ser questionada em um contexto político ainda radicalizado.
Infelizmente, apenas uma coisa é certa. Estamos vivenciando uma mudança profunda no mundo em que, por 40 anos, a ortodoxia em política monetária operou com os ventos a favor da globalização e da demografia como instrumento básico de gerência de demanda, na ausência de políticas fiscais ativas.
Agora, no entanto, estamos no limiar de um novo mundo, onde o regime fiscal nos Estados Unidos vai mudar radicalmente no sentido da expansão do gasto público e no qual novas pressões inflacionárias estruturais e, portanto, dificilmente reversíveis a curto prazo, começam a atuar na economia mundial.
O resto do ano promete, portanto, fortes emoções. Dificilmente as taxas de juros continuarão nos recordes históricos de baixa por muito tempo. A esperança para o Brasil é que, no cenário virtuoso, o comportamento das nossas exportações deverá ser excepcional e, mesmo com taxas de juros um pouco mais altas nos Estados Unidos, o cenário seria positivo, se até lá conseguirmos botar as finanças públicas em ordem. O cenário pessimista, de desvalorização do dólar e rápida alta da taxa de juros, seria certamente catastrófico para nós na atual conjuntura política doméstica.
Winston Fritsch é empresário, PhD em Economia pela Universidade de Cambridge e professor do Departamento de Economia da PUC-Rio. Foi Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e sócio e executivo principal de várias instituições financeiras.