Sessenta anos depois, é fácil reconhecer que os convidados eram geniais: a voz impecável de Diana Ross; o comovente resgate dos cantos com múltiplas origens, liderado por Harry Belafonte; a swingada inesperada de Elvis Presley e James Brown; e o talento daquele garoto de 13 anos, Stevie Wonder. No meio do caminho, a primeira apresentação na televisão americana dos Beatles — um sucesso não tão difícil de imaginar.
Ed Sullivan, filho de imigrantes irlandeses, contribuiu, com empatia e firmeza, para a descoberta da música e de suas múltiplas influências que revolucionaram a cultura nos anos 1950 e 1960.
Nascido em 1901, Sullivan começou como colunista de esporte nos jornais, mas desde o começo já disse a que vinha.
Em 1929, escreveu sobre um jogo de futebol entre universidades de Nova York e da Georgia, um estado do Sul onde a legislação ainda permitia a segregação racial. As universidades acordaram que um jogador negro de NY, Myers, ficaria no banco por todo o jogo.
Ed se revoltou e escreveu: “Que situação vergonhosa. Myers arrisca seu pescoço por uma escola que vai deixá-lo no banco porque a Universidade de Georgia pede que se trace a linha da cor”. E complementou: “A Universidade de Nova York deveria ser banida das competições de futebol permanentemente.”
O documentário Sunday Best (O melhor de Domingo) resgata a contribuição de Ed Sullivan para o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos. Liderando um programa de auditório, Sullivan convidou os melhores músicos que encontrou, e era-lhe irrelevante se muitos eram negros. São comoventes os depoimentos dos artistas que participaram do programa.
A direção da TV criticava severamente como Ed escolhia seus convidados. Por vezes, havia recados duros de anunciantes que temiam a reação dos consumidores no sul dos EUA, mais racistas, com governadores que diziam publicamente que iriam garantir a segregação racial nos seus estados.
Apesar das pressões, Ed Sullivan promoveu artistas negros e sua arte em um dos programas mais assistidos da televisão americana. E não parava aí. Imigrantes das mais diversas origens, da música clássica ao rock and roll. Sullivan convidava à arte e ao encontro.
O contraste da sua ética e reconhecimento pelo talento não podia ser maior com os tempos atuais.
A Amazon de Jeff Bezos pagou um adiantamento de US$ 40 milhões para ter os direitos de um documentário chapa-branca sobre a primeira-dama Melania Trump. Disney, CBS e ABC correm para pagar acordos extrajudiciais milionários em processos que Donald Trump movia contra jornalistas, mesmo com boa chance de vencerem nos tribunais.
Em momentos de uma mídia nas mãos de conglomerados sem princípios ou estatura moral, Sunday Best recupera o legado surpreendente de um dos mais populares apresentadores de TV dos EUA entre 1948 e 1971.
Em 23 anos – que atravessaram a caça às bruxas do macartismo, as convulsões da segregação racial, as lutas (e os assassinatos) de John F. Kennedy e Martin Luther King – Sullivan desafiou patrões e anunciantes.
Convidou pela primeira vez para rede nacional para os então muito jovens Stevie Wonder, Diana Ross com seu trio The Supremes (que se apresentaram 14 vezes, um recorde no programa), e Nat King Cole, ainda em 1949 – quando quase toda a TV americana era segregada, com show, séries e novelas exclusivamente para e com brancos.
O documentário registra as apresentações de Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Nina Simone e Ray Charles em meio a gestos afetuosos, inesperados naqueles tempos.
O documentário mostra as pressões de executivos, críticas em jornais e até de governadores do Sul racista, como o da Georgia, dizendo que o programa era uma má influência para quem defendia a pureza dos brancos americanos.
Mas Sullivan, criado no Harlem quando o bairro era populado em sua maioria por irlandeses e judeus de baixa renda, e que viu a enorme migração de negros do Sul para Nova York fugindo dos linchamentos da Ku Klux Klan, aprendeu a conviver com a diversidade desde cedo.
Sullivan conta que os ataques aos negros eram muito parecidos ao que seu pai e demais imigrantes irlandeses ouviam dos brancos: “vagabundos, desleixados, violentos e instáveis emocionalmente.”
Ele conhecia o que era discriminação em primeira mão.
O diretor Sacha Jenkins – um jornalista que migrou para a música e depois para os documentários (na última década, dirigiu cinco) – vendeu os direitos do filme para a Netflix no início do ano e morreu em maio, dois meses antes da estreia no streaming.
Jenkins dá ênfase à relação entre Sullivan e artistas negros que dificilmente teriam alcançado o estrelado naquela época sem a plataforma dominical, que diversas vezes ultrapassou os 50 milhões de telespectadores (ou um terço de toda a população dos EUA em 1955).
A primeira apresentação de Elvis Presley, em 1956, teve a maior porcentagem de TVs ligadas em um mesmo programa na história da televisão do país: 83% dos aparelhos.
O filme registra que os Beatles, em 1964, decidiram fazer seu primeiro show ao vivo na TV americana no programa de Ed Sullivan.
Sunday Best não mostra que Sullivan também levou nomes como Maria Callas, Itzhak Perlman, a bailarina Margot Fonteyn, os Muppets e vários musicais, com elencos originais de Hair, West Side Story e Cabaret. De Janis Joplin a uma ensandecida apresentação dos The Doors.
Sullivan gostava de arte. Ele queria saber do outro, ouvir. Empatia e destemor para apoiar o que acredita – talvez estes sejam os temas que definem Ed Sullivan.
O longevo show de variedades foi copiado por muitos, inclusive Silvio Santos, nos cenários, formatos e cacoetes. As cópias, contudo, jamais chegaram à insaciável curiosidade e ousadia de Sullivan.
O homem não tinha o perfil esperado de um apresentador: seu corpo era confinado, o sorriso era duro, o gestual, por vezes constrangido, e o olhar disperso, evitando a câmara, resultando em críticas contumazes.
Mas tinha empatia e destemor. Contra a advertência dos produtores e anunciantes, tocava e abraçava seus convidados, escolhidos pela arte inesperada e comovente.
Ed Sullivan pode não ter nascido para o protocolo da televisão e das redes sociais. Mas a televisão precisava – e ainda precisa – de um Ed Sullivan.
Marcos Lisboa é economista.
Raul Juste Lores é jornalista.