A narrativa de que o presidente Lula sempre deu total autonomia a Henrique Meirelles quando este presidia o Banco Central não é exatamente verdade.

É isso o que mostra um trecho do livro Eles Não São Loucos (Portfolio Penguin, 336 págs), no qual João Borges, um experiente jornalista econômico de Brasilia, narra os bastidores da transição entre o governo FHC e Lula.

Borges escreveu o livro com base em entrevistas e episódios vividos por ele em 2000-2002, quando foi chefe da comunicação do Banco Central, tendo acesso direto a Meirelles.

No capítulo O Jantar Esfriou, Borges narra a relação de Lula com Meirelles e a quase demissão do então presidente do BC. O motivo: ele não queria baixar os juros.

Abaixo, um trecho do livro:

Para Lula e o PT, a alta dos juros promovida por Meirelles no BC em 2005 não só era injustificável como constituía uma ameaça real para os dois anos finais de mandato, pois interromperia o tão festejado crescimento de 2004. Durante um dos despachos no Palácio do Planalto, que raramente constavam da agenda oficial da Presidência, Lula cobrou Meirelles pela alta da Selic. 

Em 2004, a economia havia crescido 5,2% e estava em aceleração — era o melhor resultado desde 1994, ano de lançamento do Plano Real, que viabilizara a candidatura, a eleição e a reeleição de Fernando Henrique em confronto direto com Lula. A explicação do presidente do BC foi que era necessário desacelerar um pouco a economia para não pressionar a inflação. Segundo Meirelles, teria se dado o seguinte diálogo: 

“Presidente, está indo tudo muito bem, não estamos com problema, não, fique tranquilo.”

“Mas, Meirelles, nós vamos perder a eleição!” 

“Iiih, eleição? Tem eleição este ano?” 

10153 dc0c81b2 7161 0000 0004 d336d97d84b8“Larga de gozar, Meirelles, eleição é no ano que vem!” 

“Presidente, nós temos muuuuiiiito tempo, fica tranquilo, até lá a economia estará estabilizada, inflação baixa. Preocupa com isso, não. A economia vai crescer, haverá aumento de emprego.”

Segundo Meirelles, o presidente não gostou do que ouviu. No final de 2005, a situação era preocupante para Lula. O escândalo do mensalão havia elevado os seus índices de rejeição para acima de 40%, nível a partir do qual os especialistas avaliam que dificilmente um candidato consegue sair vencedor. A taxa de juros, depois de atingir 19,75% no decorrer do ano, havia caído um pouco, mas ainda estava no elevadíssimo patamar de 18%, mais do que suficiente para manter a economia travada. O crescimento naquele ano, conforme seria divulgado no final de fevereiro pelo IBGE, foi de apenas 2,3%, número mais tarde revisto para 3,2%.

O presidente do BC ainda enfrentaria um segundo e ainda mais delicado momento de estresse na relação com Lula. A previsão de Meirelles, Palocci e Delfim Netto de que a economia ganharia tração e cresceria no decorrer de 2006 se confirmou. A melhoria dos indicadores foi fator preponderante para que Lula fosse eleito em outubro daquele ano. Justamente depois da posse do segundo mandato, porém, o presidente voltou a pressionar Meirelles, e a relação entre ambos esfriou. 

Em janeiro de 2007, Lula lançou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), um programa de estímulo que previa alavancar recursos públicos para projetos de infraestrutura e tudo o mais que pudesse turbinar a economia.

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, na apresentação do lançamento do programa, fez projeções otimistas. Diante de Lula, diversos ministros e uma plateia composta de empresários e trabalhadores, Mantega provocou Meirelles, afirmando que só faltava o Banco Central cumprir a sua parte — ou seja, era necessária uma redução de juros. Meirelles, que estava no evento, se manteve impassível, mas sentiu que a alfinetada tinha o aval do presidente, o que se confirmou dois dias depois, uma quarta-feira, pouco antes da primeira reunião do ano do Copom. 

Lula, que até então pressionava Meirelles de forma indireta quando estava contrariado com a política do BC, dessa vez agiu sem intermediários ou insinuações, pedindo à secretária que ligasse para a presidência do Banco Central. Segundo Meirelles, houve o seguinte diálogo:

“Meirelles, nós precisamos atingir um crescimento de 5% este ano. E para isso nós precisamos que o Banco Central reduza mais rápido esse juro. Estão me dizendo que desse jeito só vai crescer 3%. E aí não dá, Meirelles.” 

“Presidente, o senhor fique tranquilo porque nós vamos tomar a decisão que for melhor para o país. Como sempre tomamos nossas decisões com muito critério.” 

O Banco Central de fato reduziu a taxa de juros, mas apenas em 0,25 ponto percentual, para 13%. “Tomamos a decisão que ele não queria”, explicou Meirelles ao revelar qual foi a reação de Lula: 

“Naquela noite mesmo, depois do Copom, nós embarcamos para Davos. Ele entrou no avião muito bravo. Foi a única viagem dele, que eu me lembre, que ele se trancou sozinho lá naquela sala da frente [do avião presidencial], eu sentado ao lado do Mantega, e ele sozinho lá. Não entrou ninguém. Ficou lá, sozinho, bravo.

Quando desembarcaram em Davos, Lula foi cercado pelos jornalistas, que perguntaram sobre o PAC e, principalmente, sobre a decisão do BC de reduzir a taxa de juros em apenas 0,25%. Henrique Meirelles recorda a reação de Lula: “Fala com o Meirelles! Meirelles, explica aí, Meirelles!”.

“Aí eu vi que ele estava bravo mesmo, que no avião estava muito bravo mesmo, não falou com ninguém, se trancou lá dentro e quando desceu, ainda estava bravo”, contou Meirelles. Lula e o presidente do Banco Central ficaram sem se falar por dois meses. 

“Aí um belo dia eu vejo uma notinha n’O Globo, na coluna do jornalista Ilimar Franco. Estava a notinha lá embaixo na coluna, curtinha assim: ‘A raiva passou’. Dizia que o Lula tinha ficado zangado comigo, mas que agora tinha passado, estava tudo bem. Passou uns dias, pedi uma audiência a ele. Nunca mais tocou no assunto. Mas foi um momento de tensão.”

Já em 2008, tudo corria bem para o presidente e o seu governo. A economia estava em franca aceleração, inflação sob controle, desemprego em queda e popularidade em alta. A taxa Selic, que havia chegado a 26,5% no início do primeiro mandato, se encontrava no nível mais baixo, em 11,25% ao ano. Lula tinha motivos de sobra para estar contente com seu presidente do Banco Central. Pelos cálculos de Lula, no entanto, era a oportunidade ideal para se livrar de Meirelles. 

O presidente já vinha dando sinais de que combate à inflação e taxa de juros já não combinavam com o ritmo que decidira imprimir ao seu segundo mandato. O PAC era a grande vitrine do governo, que animava empresários e sindicalistas. Em abril daquele ano, Lula chamou ao Palácio da Alvorada Antonio Palocci, que voltara à política com a conquista de um mandato de deputado federal na eleição de 2006.

“Palocci, eu vou demitir o Meirelles e vou fazer isso logo, esta semana.” 

“Está bem, mas por que você me chamou aqui?” 

“Eu queria te avisar porque foi você que convidou o Meirelles e ele foi legal com a gente. E eu queria que você soubesse.” 

“Tá bom, mas você não poderia fazer uma coisa mais elegante? Ele ajudou a gente durante seis anos. Podemos trabalhar para que ele peça demissão.” 

“Se você puder fazer isso eu preferiria, mas eu não tenho como.” 

O diálogo entre o presidente Lula e seu ex-ministro da Fazenda foi breve, pois havia outras pessoas no salão principal do Alvorada, e Palocci não quis se estender em assunto tão delicado na presença de outros convidados. No dia seguinte, o ex-ministro foi ao Palácio do Planalto conversar com Lula. A conversa começou com uma tentativa de convencer o presidente a mudar de ideia:

“Você está cometendo um erro em mexer no Banco Central agora. Está tudo muito tranquilo.”

“Mas o Guido não se dá com o Meirelles. Fica um contra o outro. Vamos tocar em frente.”

Palocci conta que fez ao menos quatro reuniões com Meirelles. “Eu ficava ali procurando assunto. Um dia, ele falou de eleição.” O ex-ministro aproveitou a deixa para sugerir a Meirelles que ele se candidatasse ao governo de Goiás. Apesar de nunca ter achado que essa fosse uma boa opção para Meirelles, induzi-lo a se credenciar como possível candidato a governador seria melhor do que submetê-lo a uma humilhante demissão. 

Lula, inclusive, já havia autorizado Guido Mantega a encontrar um substituto, que seria o economista Luiz Gonzaga Belluzzo. O argumento de Palocci parecia sedutor: “Por que você não aproveita agora que está em alta e pede demissão? Eu nunca consegui sair em alta, o certo é sair em alta”. 

Meirelles não se entusiasmava com a ideia, pois seu sonho sempre fora concorrer à Presidência, ainda que antes tivesse que passar pelo cargo de vice. Porém, ele sentia que o clima entre ele e Lula não estava nada bom, e aquela conversa de Palocci sobre eleição em Goiás era um mau sinal. 

Além disso, Meirelles já havia recebido outro indício de Lula de que seu cargo estava por um fio. Ao final de um despacho com Lula, quando já se despedia, foi surpreendido pelo presidente:

“Meirelles, você nunca convidou eu e a Marisa para jantar na sua casa.” 

“Perfeitamente, presidente, está convidado.” 

Quando chegou em casa, Meirelles informou à esposa, Eva Missine, do desejo de Lula. 

“Uai, mas por que isso de repente?” 

“Despedida.” 

“Despedida?” 

“É, despedida.”

O jantar foi marcado para dali a três dias, às oito e meia da noite, na residência de Meirelles, no Lago Sul de Brasília. Por volta das três horas, chegaram os seguranças da Presidência. “Ocuparam a minha casa, parte do lago, tinha até lancha da Marinha aqui em frente”, conta Meirelles. Lula costumava se atrasar para os compromissos. Meirelles era pontual. A demora o impacientava. “Oito e meia nada. Nove horas nada. Nove e meia nada. Eu então ligo para o chefe de gabinete, Cezar Alvarez, e pergunto: ‘Alvarez, cadê o presidente?’. ‘Ih, Meirelles… O presidente e a dona Marisa estão trancados lá em cima, na ala íntima do Palácio, e não sai de lá, não fala com ninguém, não atende telefone’.

A espera se estendeu até as dez e meia. Meirelles voltou a ligar para o chefe de gabinete: 

“Alvarez, você quer tirar a segurança aqui da minha casa, por favor, que eu preciso dormir!”

“O que é isso, o que houve?”, quis saber a esposa de Meirelles. 

“Desistiu.” 

Perguntei a Meirelles sobre o que foi feito com a comida que não foi servida a Lula. “Eu comi no dia seguinte. Eu, minha mulher e alguns convidados amigos. Estava bom,” contou ele.

10203 7507252c d455 0000 0001 565943e8487aOs dias foram passando, sem que Lula o demitisse. Até que em maio, numa sexta-feira, Lula telefonou para Palocci: 

“O Meirelles esteve aqui ontem. Foi uma ótima conversa. Então eu queria te agradecer porque você foi muito correto e habilidoso no que propôs. Eu achei que você estava me enrolando, mas ficou perfeito, porque ele veio, conversamos e ficou tudo certo, muito bom.” 

“Tá bom, mas eu fiz isso apenas para não ficar ruim. Continuo achando que você está fazendo uma bela de uma cagada…” 

Lula o interrompeu: 

“Não, eu estou ligando por um segundo motivo: eu desisti de fazer.” 

“Mas por que você desistiu?”

“Na conversa eu senti que o Meirelles é o cara certo para ficar lá no Banco Central.” 

Dias depois, Guido Mantega procurou Lula para dizer que já havia encontrado o nome para o BC. Lula reagiu: 

“Nome pra quê?”

“Para substituir o Meirelles, você me autorizou…” 

O presidente não quis sequer continuar a conversa: 

“Você tá louco?”

O que teria levado Lula a reconsiderar uma decisão que dissera estar tomada? Não foram os argumentos de Palocci, nem a conversa com Meirelles naquela quinta-feira de maio. No dia 30 de abril, a agência de classificação de risco Standard & Poor’s concedeu ao Brasil o grau de investimento, classificando-o como um país de baixo risco e portanto mais atrativo para investidores externos. 

Era um reconhecimento de que a situação econômica nacional estava mais sólida, e que sua política econômica estava na direção correta. O assunto foi manchete nos jornais, e motivo de muita comemoração da parte de Lula.

Palocci nunca revelou a Meirelles a conversa na qual o presidente dissera que o demitiria. E Meirelles não contou a Lula que ele havia feito gestões nos bastidores financeiros para que a elevação da classificação de risco do Brasil, já no radar nas agências de rating, fosse antecipada. A melhoria do rating do Brasil, que tanta satisfação causou a Lula, levou o presidente a recuar da decisão de demitir naquele momento o presidente do Banco Central.