Pelo menos numa coisa esquerda e direita concordam no Brasil:  rasgar contratos é como trocar de camisa.

Há poucos dias, o Governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, fez a agência estadual que regula o setor de gás publicar uma série de mudanças no contrato do estado com a CEG e a CEG-Rio, as distribuidoras de gás que operam sob concessão do Estado.

Com uma simples canetada, a agência alterou as tarifas, reduzindo a margem da CEG e CEG-Rio. Ambas são controladas e operadas pela Naturgy (a antiga GasNatural-Fenosa), uma multinacional espanhola com presença em diversos países.

Mais:  a nova regra permite que clientes construam um ‘bypass físico’ à rede da concessionária.  (Em tese, ao ser dono de sua última milha, o cliente pagará menos do que se usassse a da distribuidora.)

Não é incomum que um Poder Concedente queira mudar as regras do jogo, mas, pela lei, as mudanças precisam ser acordadas com a empresa regulada, que está amparada no contrato — aquele ente sagrado mas frequentemente profanado.

Witzel fez as mudanças sem sequer consultar as concessionárias, que já entraram com embargos na agência reguladora.  Se forem ignoradas, a coisa deve acabar na Justiça, criando mais um “estudo de caso” para a insegurança jurídica brasileira, que transforma nosso ambiente de negócios nesta grande piada sem graça.

Depois de rasgar o contrato sem cerimônia, Witzel ainda bateu no peito.  “Eu sou bom de briga no tribunal.  Se tiver judicialização, a gente briga,” gabou-se o governador e declarado aspirante à Presidência.  Detalhe irônico:  Witzel chamou as empresas para a briga enquanto visitava a Brasil Offshore, a feira de negócios que tenta fomentar investimento (!) nas indústrias de óleo e gás.

O Governador Witzel tem diversas afinidades com o Presidente Bolsonaro, mas a principal delas talvez seja “não entender de economia.”  No curso, aprende-se que nem todos os monopólios são iguais.  

Um monopólio “de fato” é diferente de um “monopólio natural”, aquele em que uma empresa, operando sozinha, consegue ser mais eficiente do que se houvesse duas ou três prestando o mesmo serviço.  (Por exemplo: em nenhum lugar do mundo faria sentido duas companhias de metrô competirem na mesma linha, construindo dois túneis paralelos.)

Os monopólios naturais — como o da distribuição do gás nos Estados — são, na prática, inquebráveis, e justamente por isso têm que ser fortemente regulados.  

Ao tentar reinventar a roda — permitindo o bypass físico — Witzel deve colher o oposto do que plantou. Setores de infraestrutura são tipicamente ‘indústrias de rede’, em que a escala dilui os custos para todos os participantes do sistema.  Ao permitir que um cliente crie sua própria ‘última milha’ para — em tese — ter um gás mais barato, o governador está criando ‘deseconomias de escala’.  Em outras palavras: encarecendo o gás para todos os consumidores que ficam dentro do sistema.

Em vez de “abrir o Estado do Rio à competição,” Witzel está dando um tiro no pé — do seu próprio estado e do Brasil:  imaginem as fortes emoções que uma empresa como a Engie, que acaba de investir US$ 9 bilhões comprando um gasoduto da Petrobras, deve estar sentindo neste momento, ao ser lembrada de que, no Brasil, “até o passado é incerto”, como ensinou Pedro Malan.

A mudança nas regras do Rio foi incentivada pelo Ministério da Economia, que vê a medida como parte do “choque da energia barata” que o Governo Federal deve anunciar.  (O Governo está impondo a mudança como condição para que estados quebrados tenham acesso a novos financiamentos do Tesouro.)

Na semana passada, o Ministro Paulo Guedes aplaudiu o Rio por ser pioneiro em quebrar monopólios. Como costuma dizer o ministro, o Governo pode até estar “na direção certa”, mas o diabo mora nos detalhes.  

Os escritórios de advocacia estão eufóricos.  A Abegás — que reúne as concessionárias do setor — vai contratar representação legal para questionar as mudanças na Justiça e evitar que outros governadores também tomem medidas unilaterais.

O setor de energia teme que o “choque de energia barata” acabe sendo a versão bolsonarista da MP 579, pela qual Dilma Rousseff rasgou contratos no setor elétrico para criar  seu próprio choque de energia barata.  Quem acabou eletrocutado foi o bom senso.

UPDATE: O Ministério da Economia entrou em contato para dizer que não apoia “bypass ou qualquer quebra contratual” com as distribuidoras.

O Ministério faz referência à “Nota técnica conjunta — Rumo ao novo mercado de gás,” de 8 de julho, na qual afirma, à página 10:  

“Deve-se deixar claro que é entendimento do Governo Federal que os contratos atualmente vigentes devem ser respeitados e não podem ter suas cláusulas unilateralmente alteradas. Deve haver um processo de revisão bilateralmente negociado com as distribuidoras.”