Os nossos primos do norte, os “americanos”, sabem louvar seus heróis. Cultuam, como ninguém, seus antepassados, criando, com o tempo, verdadeiros mitos, que servem como paradigmas, grandes modelos de admiração.

Ainda na escola, figuras da sua história – Washington, Lincoln, Roosevelt, Kennedy – passam a formar um panteão de deuses, cada um com sua qualidade extraordinária: lealdade, obediência, honestidade, resiliência. Assim, os americanos fortalecem sua identidade e unem-se ao redor de valores – certamente um dos principais motivos de seu protagonismo na história contemporânea.

Talvez também por isso eles se apoderaram da qualificação de “americanos”, quando, na realidade, todos nós, nascidos no continente americano, deveríamos ser prontamente reconhecidos assim. Mas não, são eles.

A história norte-americana é recente. Não testemunhou as descobertas maravilhosas da Antiguidade Clássica, não cruzou o misticismo da Idade Média, nem assistiu o florescer do Renascimento. Foi um começo duro.

Como a grande parte das terras colonizadas no “admirável novo mundo”, o território norte-americano foi habitado, inicialmente, por degredados e aqueles que fugiam das intolerâncias da Inglaterra do século XVII. A chegada deles não foi pacífica.

Os primeiros colonos combateram fisicamente os nativos – e muitos grupos que aportaram foram dizimados pelos indígenas. Adiante – em mais uma demonstração da capacidade norte-americana de “fazer” a sua história – passaram a celebrar o Dia de Ação de Graças, o “Thanksgiving”, tornando-o o mais popular de seus feriados. Nesse dia, comemora-se a missa feita por esses peregrinos que desembarcaram por volta de 1620, tendo a iconografia incorporado uma comunhão também com os nativos. Como se diz, os americanos sabem fazer as coisas.

Diferentemente do resto das colônias deste continente, as norte-americanas incentivavam profundamente a educação. Havia, desde cedo, editoras, escolas e universidades. Permita-me dar uma informação triste: na época da nossa independência, em 1822, não havia curso superior no Brasil. Já nos Estados Unidos, antes de 1776, existiam nove universidades – todas elas em atividade até os nossos dias e notabilizadas por sua excelência, como Harvard, Yale, Princeton e Columbia. 

O estudo, a difusão de conhecimento e a possibilidade de discutir ideias motivam as pessoas a pensar e aguçam seu espírito crítico. Eis a grande diferença que pesou positivamente em favor dos norte-americanos.

Reconhecendo a injustiça do modelo colonial, marcado pelo arbítrio e pela subserviência, um grupo de homens notáveis liderou um movimento revolucionário. Foram os primeiros na América a se rebelar contra a metrópole, movidos por ideias como liberdade, igualdade, democracia e o direito à busca da felicidade.

Formularam a primeira carta constitucional da história – tão poderosa que, até hoje, segue em vigor. A Constituição norte-americana, redigida em 1787, começa com o icônico: “We The People”… – Nós, o povo. 

O fato de ser obra dos cidadãos, da coletividade, a legitima. Derrubaram o rei antes dos franceses: a Revolução Americana antecede a Francesa em pouco mais de uma década. Ao contrário do que aconteceu na França, onde havia uma sociedade solidamente estabelecida, marcada por privilégios, com antigos hábitos e vícios consolidados, os norte-americanos semeavam num estado novo, leve, um grande e vasto “greenfield”, sem o peso da nobreza ou do clero. Naquele tempo, foram forjadas as bases da nação.

Acima de tudo, a história é feita pela gente. Chama-se essa geração dos construtores dos Estados Unidos de “pais fundadores” – os “Founding Fathers”. Muito justo. Nada foi fácil para eles. Coragem, idealismo, abnegação e esforço são algumas das qualidades que custaram muito a esses seres humanos, mas cujo resultado foi uma nação baseada em valores sólidos.

Dentre esses “pais fundadores”, todos dignos de admiração, a vida mais fantástica foi possivelmente a de Alexander Hamilton. Essa é a primeira razão pela qual Alexander Hamilton,” a magistral biografia escrita por Ron Chernow, se tornou um retumbante sucesso editorial, agora trazido ao Brasil pela Intrínseca, numa cuidadosa tradução de Donaldson Garschagen e Renata Guerra.

Fruto de extensa pesquisa e escrita num ritmo pulsante, o livro tornou-se uma poderosa fonte de inspiração. Difícil não se emocionar.

Hamilton nasceu em Charlestown, na ilha caribenha de Nevis, à época propriedade britânica. Seus pais não eram casados, o que lhe fez vítima de preconceitos desde pequeno. O pai abandona a família e Hamilton, ainda garoto, muda-se com a mãe para Saint Croix, outra ilha inglesa no Caribe. Com a morte da mãe, é adotado por um parente, que se suicida em seguida. 

Recebe uma segunda adoção, feita por um carpinteiro de Nevis. Passa a trabalhar como contador de uma empresa de importações. Leitor insaciável, sabia escrever primorosamente. Ao publicar um ensaio sobre um furacão, ganha notoriedade local. Em Nevis, houve uma cotização para angariar fundos e permitir que Hamilton progredisse em seus estudos nas colônias da América, onde já havia universidades. 

O talento do jovem órfão não poderia ser desperdiçado. Assim, Hamilton navegou para Nova Jersey, onde ingressou na King’s College, futura Universidade de Columbia, em 1773. Ali, teve acesso a Locke, Montesquieu, Grócio, Blackstone e Samuel Pufendorf – num curso que privilegiava o conhecimento dos clássicos. Estudou com vistas a se fazer advogado.

Idealista, engajou-se na causa da liberdade das colônias. Hamilton lutou ao lado de Washington contra as forças inglesas que se opunham à separação da colônia. Estabeleceu-se em Nova York. Não obstante seu interesse pela política, jamais abandonou a advocacia – e “venerava” a lei, relata Chernow.

Entre o final de 1787 e meados de 1788, em jornais de Nova York, Hamilton, James Madison e John Jay expuseram suas opiniões em textos, refletindo os pensamentos dos redatores da Constituição Americana. Agrupados, esses ensaios ficaram conhecidos como Os Artigos Federalistas. Não são um tratado teórico de política, mas comentários práticos sobre o poder e a forma de exercê-lo. Uma espécie de evangelho político. 

É possível apontar a autoria de cada um desses artigos. Sabe-se que Jay escreveu apenas cinco, enquanto Madison foi autor de 26. Os demais, 51, ficaram a cargo de Hamilton, que liderou os trabalhos. Madison veio a ser o quarto presidente dos Estados Unidos; Jay, presidente da Suprema Corte durante a presidência de Washington. Hamilton, por sua vez, foi o primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos.

O grande antagonista de Hamilton na política novaiorquina foi outro advogado: Aaron Burr, futuro vice-presidente na gestão de Thomas Jefferson, entre 1801 e 1805. As diferenças pessoais entre eles foram resolvidas num dramático duelo à beira do Rio Hudson, em 11 de julho de 1804, no qual Hamilton, com apenas 49 anos, acabou mortalmente ferido pelo então vice-presidente Burr.

A força do livro se revela também pela sua adaptação, com a ajuda do próprio Chernow, por Lin-Manuel Miranda, para se transformar no musical que se tornou fenômeno na Broadway. 

Quais lições colhemos de Hamilton? 

A primeira é a importância do esforço e da educação. Diversos e dramáticos fatos conspiraram contra Hamilton, que, valendo-se de sua tenacidade e estudo, saiu de uma pequena ilha do Caribe para liderar uma revolução, criando não apenas um país, mas um farol de liberdade e igualdade. 

Além disso, a leitura de Hamilton deixa claro que a boa política, aquela que rende frutos e ajuda a construir uma nação, é feita a partir dos bons valores, da transparência de propósitos, do espírito público, altruísmo, coerência e honestidade. 

O Brasil precisa de um Hamilton.


José Roberto de Castro Neves é sócio do Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados (FCDG).