Uma das minhas histórias prediletas contadas pelo próprio Erasmo Carlos é aquela sobre quando ele, no início dos anos 70, foi assistir a um show de Elvis Presley em Las Vegas.
O rei do rock havia iniciado um período de performances disputadíssimas no Internacional Hotel (hoje Las Vegas Hilton), onde era acompanhado por uma superbanda. Erasmo lembra que no restaurante anexo ao hotel – para pouquíssimas testemunhas – havia concertos de roqueiros dos anos 50. Muitas das atrações, aliás, eram contemporâneos de Elvis que não haviam tido o mesmo sucesso.
A discrepância soou como um alerta para Erasmo, cuja carreira até então era umbilicalmente ligada à Jovem Guarda.
“Tinha de evoluir, caso contrário terminaria do mesmo modo que os ex-parceiros do Elvis Presley,” confessou.
Erasmo Carlos nos deixou ontem, vítima de uma síndrome edemigênica – uma doença causada pelo desequilíbrio bioquímico do corpo.
Felizmente, Erasmo foi muito além do Tremendão, o epíteto pelo qual ficou conhecido no programa Jovem Guarda, nas tardes de domingo. Seu outro apelido, Gigante Gentil, foi dado pela cantora e guitarrista Lucia Turnbull por causa do 1,93 de altura do amigo, também conhecido por sua doçura extrema.
Erasmo explorou as diferentes vertentes do rock, inclusive na sua mistura com o samba nativo; pesquisou a fundo o soul e a música caribenha, e explorou sua faceta romântica nos discos lançados na década de 80.
Ponta de lança de um gênero chamado (injustamente) de alienado, foi reverenciado por artistas das mais diferentes gerações da MPB. Elis Regina, Caetano (de quem, aliás, gravou De Noite na Cama) e Marisa Monte estão entre os nomes que louvaram sua trajetória.
Erasmo Esteves nasceu na Tijuca, na zona norte do Rio, em 5 de junho de 1941. Filho de mãe solteira, ele desde cedo usou da imaginação para driblar as dificuldades da família.
“Eu chegava a vender meu lugar na fila do açougue para faturar um dinheiro em casa,” confessou certa vez.
Os primeiros passos musicais foram dados ainda na adolescência, quando integrou o grupo The Boys of Rock, que posteriormente viraria The Snakes. O mentor daquele amontoado de meninos era Carlos Imperial, um agitador cultural conhecido tanto pelos artistas que apadrinhava quanto pelo talento para a armação – certa feita, registrou a canção popular Meu Limão, Meu Limoeiro em seu nome e recebeu direitos autorais por sua execução.
Erasmo passou a trabalhar com Imperial como secretário. “Até os dias de hoje eu penso, ‘O que Imperial faria no meu lugar?’ sempre quando estou em dúvida,” dizia.
Durante o período em que trabalhou ao lado do dublê de apresentador – ele tinha um programa de rock – Erasmo conheceu um intérprete iniciante chamado Roberto Carlos. Os dois futuramente seriam conhecidos como uma das maiores parcerias da história da música brasileira.
Inicialmente, Erasmo se destacou como versionista de rocks cantados em inglês, como Splish Splash, e participou de uma das formações do grupo Renato & seus Blue Caps. Mas em 1964, partiu para a carreira solo ao lançar os compactos Terror dos Namorados e Festa de Arromba, parcerias ao lado de Roberto. O estouro, contudo, ainda estava por vir.
Jovem Guarda, programa que estreou na TV Record em setembro de 1965, foi um dos primeiros shows dirigidos ao público jovem que virou mania nacional. Ao lado de Wanderléia, Erasmo e Roberto traziam atrações do iniciante rock brasileiro, como Renato & seus Blue Caps, VIPs e Martinha, entre muitos outros.
“A Jovem Guarda mostrou que o jovem podia se expressar, na fala, na atitude, na vestimenta…” Nem tudo, contudo, eram flores. Os líderes do movimento frequentemente eram proibidos de se apresentar em cidades do interior e seus ídolos foram chamados de “alienados” por quem fazia parte de uma MPB politizada. A redenção veio através da Tropicália, que avalizou a importância cultural dos roqueiros, e de Elis Regina, que incluiu As Curvas da Estrada de Santos, de Erasmo e Roberto Carlos em seu repertório.
A parceria com Roberto Carlos, embora importante, foi de certa forma redutora. Muitas vezes, a importância de Erasmo é esquecida ou diminuída. “Certa vez, meu neto brigou na escola porque um colega de classe não acreditou que eu tinha escrito Jesus Cristo,” desabafou.
Sua carreira solo foi composta de trabalhos memoráveis como Carlos, Erasmo, lançado em 1971. Ele traz canções de Caetano, Taiguara e Jorge Ben Jor num trabalho que une exemplarmente rock e MPB. Uma marca que se repetiria por sua discografia na década de 70 – aliás, vale MUITO a pena escutar a versão dele de Paralelas, de Belchior, registrada no disco A Banda dos Contentes, de 1976.
Em 1980, ele revisitou seu trabalho autoral em Erasmo Carlos Convida, no qual fez duetos com Roberto Carlos, Caetano Veloso, Gal Costa, Nara Leão, Maria Bethânia e Jorge Ben, seu companheiro das noitadas musicais da Tijuca. O trabalho marca outra mudança na carreira de Erasmo: mais romântico, se dedicou a baladas que traziam um quê de feminismo como Mulher e Mesmo que Seja Eu – que depois seria adotado como um hino LGBTQIA+.
A carreira de Erasmo passou por um período de altos e baixos nos anos 90. Em meados daquela década, ele passou por um drama pessoal: sua ex-mulher, Narinha, morreu depois de ingerir cianeto – ela havia tentado o suicídio outras duas vezes. Erasmo lembra também que foi um período sombrio de sua vida, onde se envolveu com bebidas e entorpecentes.
Em 2001, ele encerra um silêncio de seis anos e lança Pra Falar de Amor. O destaque do álbum é Mais um na Multidão, dueto do cantor com Marisa Monte. Erasmo Carlos continuou a lançar álbuns de boa qualidade, como Rock’n’Roll (2009) e Sexo (2011), no qual explorou sua vertente de rocks e baladas.
No início de 2021, reviu o movimento musical que o apresentou para o mundo em O Futuro Pertence… à Jovem Guarda. Mas o sujeito que largou o movimento para sobreviver artisticamente se arrependeu? Nem tanto.
Depois de muita exploração e sua confirmação no panteão dos grandes da música brasileira, Erasmo retornou ao iê-iê-iê (que vez ou outra foi homenageado em seus discos) para mostrar sua qualidade como música e apresentá-lo para a nova geração. Ele acabou se tornando um testamento de sua grandeza.