CACHOEIRA, Bahia – Aqui nesta cidade histórica do Recôncavo, uma irmandade de mulheres negras celebra a morte como passagem e liberdade. É um rito de fé, beleza e resistência que atravessa séculos — e transforma quem participa.
Quando a noite começa a cair sobre as ruas de pedra, o ar é morno, o céu escurece lentamente, e os passos ganham outro ritmo.
Sigo até a Capela de Nossa Senhora d’Ajuda. Depois da missa, a imagem que representa o corpo da Virgem Maria — Nossa Senhora da Boa Morte — sai em procissão. As integrantes da irmandade caminham pelas ruas em silêncio respeitoso, vestidas de branco, levando velas acesas nas mãos. Caminham em homenagem às irmãs falecidas, recordando seus nomes um a um. Rendas alvejadas, colares coloridos, balangandãs reluzentes.
O som dos cânticos ecoa entre os casarões coloniais. Há cheiro de vela queimada e alfazema no ar. O tempo parece suspenso. A cada passo, algo se acende — não apenas nas mãos, onde as velas são passadas de uma irmã para outra, mas dentro da gente.
A Irmandade da Boa Morte, uma confraria religiosa afro-católica composta exclusivamente por mulheres negras idosas, é quem mantém essa tradição viva há muitas gerações. Durante cinco dias, entre 13 e 17 de agosto, a cidade se transforma no cenário de um rito de passagem que une catolicismo e ancestralidade africana, corpo e espírito, vida e morte.
Na primeira vez que fui, compreendi a festa com o intelecto. Na segunda, comecei a senti-la com o coração. Agora, às vésperas da terceira ida, entendo que existem vivências que não se explicam — apenas se vivem.
A Festa da Boa Morte é, antes de tudo, um encontro entre mundos. Realizada todos os anos, homenageia Nossa Senhora da Boa Morte, figura católica associada à passagem serena da vida para a morte, e também representa, dentro da cosmologia afro-brasileira, o trânsito do Aiyê (o mundo terreno) para o Orun (o mundo espiritual). É um rito de resistência, memória, sincretismo e liberdade.
Na época colonial, essas mulheres se organizavam para comprar cartas de alforria — entre elas, e para elas. Faziam rifas, banquetes, se apoiavam mutuamente. Ao mesmo tempo, escondiam suas práticas religiosas de origem africana, pois o candomblé era perseguido. Por fora, eram vistas como beatas católicas. Por dentro, seguiam conversando com seus orixás.
Elas pediam proteção. Pediam o fim do sofrimento. Pediam, ao menos, uma boa morte. E quando a alforria era conquistada, celebravam com comida farta e samba.
Esse gesto de celebração se repete até hoje: o momento mais esperado da festa é o samba de roda no Largo d’Ajuda, quando as irmãs dançam com um contentamento que nos ensina que a fé também é corpo em movimento.
Para pessoas escravizadas e alforriadas, a morte era o único caminho possível de volta à Mãe África — seu lugar de origem, dignidade e pertencimento. “Depois de tudo o que viveram, a liberdade plena só viria após a morte,” disse um historiador com quem falei em minha primeira ida à festa. A morte, para elas, era libertação.
Entre as celebrações populares do Brasil, poucas têm o poder simbólico e a densidade histórica da Festa da Boa Morte. Com mais de 200 anos de existência, ela é reconhecida como Patrimônio Imaterial da Bahia pelo IPAC. Durante cinco dias de agosto, Cachoeira — a 120 km de Salvador — torna-se um centro espiritual e cultural pulsante. Muitos dos viajantes que cruzaram meu caminho estavam em busca de conexão, de ancestralidade. Para eles, não era turismo. Era reencontro.
Em Cachoeira, celebra-se o que é urgente: a força da mulher preta, a fé como ferramenta de resistência, e a necessidade de reparação histórica ao povo negro. Não se trata apenas de uma agenda de eventos. É uma liturgia viva. As procissões noturnas e diurnas, o enterro simbólico, a alvorada, as missas, o samba, o caruru, a comida de axé. Tudo se costura num tecido ancestral. A morte não assusta: ela se honra, se canta, se dança. E é isso que me leva de volta a Cachoeira pela terceira vez.
Adriana Lacerda é curadora de viagens da NomadRoots.