Qualquer opinião vinda de um ex-ministro de Dilma Rousseff pode gerar controvérsia — afinal, trata-se da administração que legou ao País a maior recessão da história.
 
10234 414b2cfe b2af 0000 003e 565c23731e51Mas o leitor talvez se surpreenda ao descobrir que mesmo um economista ligado a um governo de esquerda, como é o caso de Nelson Barbosa, pode ser radicalmente contra a CPMF, fervorosamente a favor de uma reforma tributária — e capaz de defender a estratégia do ministro Paulo Guedes.
 
Barbosa foi secretário de Política Econômica no governo Lula e ministro do Planejamento e da Fazenda na reta final da gestão Dilma. Entre 2012 e 2016, encaminhou uma série de medidas de reformulação do sistema tributário, como taxação de lucros distribuídos e grandes heranças, mas que não prosperaram.
 
Ele concorda com a estratégia de Paulo Guedes de fatiar a reforma em quatros etapas, mas alerta que “assim como a insistência de Guedes na capitalização quase afundou a reforma da previdência, a insistência na CPMF pode bloquear avanços urgentes e necessários na reforma do PIS-Cofins e do imposto de renda.”
 
Nesta conversa com o Brazil Journal, ele faz um balanço das dificuldades que enfrentou e um alerta sobre a necessidade de mudanças na tributação sobre as empresas. Segundo ele, o mundo inteiro está migrando para um modelo de tributar menos o lucro retido e cobrar uma alíquota maior sobre o lucro distribuído.
 
“Nós estamos tendo uma guerra fiscal mundial […]. Essa mudança terá que acontecer por aqui, ou o Brasil perderá sede de empresas para o Paraguai, Uruguai e outros países com tributação menor”, disse.

Abaixo, os principais trechos da entrevista.

Como será a retomada do crescimento após a pandemia?

Haverá uma recuperação por razões estatísticas, pois isso é normal após uma parada súbita da economia como aconteceu neste ano. Porém, não está claro se voltaremos rapidamente ao nível pré-crise. Tem gente que acha que a economia vai voltar ao normal por si só, sem estímulo adicional do governo, mas eu não acho. Houve grande perda de renda e aumento de endividamento. Mesmo quando acabar o isolamento, levaremos algum um tempo para voltar aos níveis de PIB e emprego de antes da crise.
 
Aproveitando o gancho da reforma tributária, não está na hora de o governo equilibrar mais a carga entre consumo e renda?
O modo como o governo apresentou a reforma é, na verdade, uma estratégia antiga. Desde quando eu estava lá, a gente trabalhava a reforma fatiada. São quatro grandes temas: primeiro, a tributação indireta, que já é complicadíssima como estamos vendo, pois afeta muita gente. E o governo mandou só PIS e Cofins, porque se entrar ICMS e ISS, complica mais ainda.
A segunda parte é o IPI e a CIDE. O IPI foi criado como imposto adicional sobre produtos industrializados, mas perdeu sua função e hoje é basicamente um imposto seletivo, para tributar produtos supérfluos ou com externalidades negativas. A reforma tende a combinar IPI e Cide em um imposto seletivo mais moderno, que pode incidir sobre emissão de carbono e circulação de veículos, em vez de propriedade de veículos, mais à frente.
A terceira linha é a folha de pagamentos ou contribuição ao INSS. Está claro que o trabalho formal sozinho não vai sustentar a previdência. Parte da pejotização começa por isso, pois o custo trabalhista é muito grande. As empresas preferem contratar PJs em vez de assalariados não para que os contratados paguem menos IR. Elas preferem contratar via PJ para não pagar os encargos sobre a folha de pagamento.
E por último a quarta parte, que é a tributação direta, sobre renda e riqueza, que também é necessária.
Todas são necessárias, mas você pode fazer separadamente do ponto de vista técnico. Já do ponto de vista político, é outra história e depende da situação de cada época. Hoje, acho que o governo está certo em começar pela reforma do PIS-Cofins separadamente do resto.
 
Como seria feita a reforma da tributação direta?
Primeiro, você tem que separar a pessoa física da pessoa jurídica. Vamos começar pela pessoa física.  Há o debate da tabela do Imposto de Renda. Acho a nossa tabela muito pouco progressiva. Tem faixas muito estreitas e nossa alíquota marginal mais alta é 27,5%. Na maioria dos países avançados, há alíquotas superiores a 30%. Acho que deveríamos ter uma alíquota marginal superior mais alta, sobre renda mais alta. Incidindo sobre renda acima de R$ 20 mil ou R$ 30 mil por mês. Pegaria pouquíssimas pessoas e seria a maneira correta de promover maior progressividade tributária. Mas, ao fazer isso, você teria também que revisar a tabela.
Poderíamos instituir, como há nos Estados Unidos, uma correção automática pela inflação. Aí acaba essa discussão de todos os anos, se a tabela está atrasada ou não. Você pega a inflação e corrige a tabela do Imposto de Renda. Vários países do mundo fazem isso.
 
Mas aí não cairíamos no risco da indexação?
No imposto não tem. Acontece o seguinte: você é um trabalhador, você recebeu um aumento. Suponha que o aumento só repôs inflação. Se não houver a correção da tabela, o governo está aumentando a alíquota efetiva em cima de você. Se a tabela for corrigida pela inflação, só o seu ganho real será tributado. Isso foi feito nos Estados Unidos entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980.
E sobre indexação, uma coisa são contratos, determinação de preços. Outra coisa é indexação da tabela do Imposto de Renda. Nosso salário mínimo já tem correção mínima pela inflação. O mesmo princípio vale para os benefícios do INSS. Deveria valer também para o IRPF, depois de reformar a atual tabela, com mais progressividade.
 
E aí entra também a questão das deduções. Nós temos essas deduções de classe média, não vou chamar de classe rica. Um sujeito que ganha R$ 10 mil, R$ 15 mil não está na mesma classe do Jorge Paulo Lemann, pelo amor de Deus. A desigualdade dos 1% mais ricos é enorme.        
Tabela e deduções do IRPF devem ser discutidas conjuntamente: você tem que revisar a tabela, indexar a tabela à inflação e reavaliar essas isenções de classe média, principalmente de saúde e educação privada. A verdade é que a sociedade brasileira subsidia a saúde e a educação privadas e isto precisa ser discutido.
 
E as chamadas pejotinhas?
As pejotinhas são a interseção entre as pessoas físicas e jurídicas. Como disse, devido aos encargos trabalhistas, muitas pessoas começaram a ser contratadas como PJ.
O percentual do lucro presumido para serviços é bem baixo atualmente, de 32% da receita. Quando a empresa é de uma pessoa ou de poucas pessoas, o lucro é bem maior do que 32% da receita. Não há nada de errado nisso, mas é preciso aperfeiçoar o sistema para tributar melhor o lucro efetivo em vez de o lucro presumido. O excesso de lucro distribuído acima do presumido pela Receita é o que causa a subtributação de IRPF. Principalmente para classe média alta e para os ricos mesmo.
 
E como se corrige isso?
Tributando o lucro efetivamente distribuído. Por exemplo, quando a PJ emitir nota, ela será tributada como se o lucro fosse 32% da receita, como acontece hoje. Depois, na declaração anual de IRPF dos donos da empresa, eles ou elas terão que informar quanto foi efetivamente distribuído em lucros. Se for mais de 32% da receita da empresa, a Receita tributa a diferença entre lucro efetivo e presumido com base na alíquota vigente, que se não me engano é de 25%, menor do que a alíquota mais alta de IRPF sobre renda do trabalho.
O Levy tentou fazer isso em 2015. Eu tentei de novo em 2016, mas não andou no clima daquela época. Porém, como o diagnóstico estava correto, a questão acaba voltando, mesmo no atual governo.
 
Uma medida relativamente simples…
Sim, mas vai pegar a renda de muita gente de alto poder aquisitivo e pressão política, vide a chiadeira da OAB contra o fim da desoneração de serviços proposta pelo governo. A reforma pode ser feita mantendo a alíquota de IRPJ e CSLL sobre PJs de modo que não haveria como se falar em aumento de carga. A reforma apenas acabaria com a subestimação do lucro efetivo das empresas.
E aí tem outra briga. Há muita gente mais à esquerda defendendo tributar mais PJs, pois o trabalhador paga uma alíquota marginal de IRPF de até 27,5% sobe seu salário. Eu sou contra. Quem tem carteira assinada tem férias, 13º, FTGS e previsibilidade do salário ou mesmo estabilidade no emprego, se for servidor. Já quem é PJ corre risco. Tem mês que a pessoa ou empresa pode ganhar. Tem mês que isto não acontece. Por isso acho que a tributação sobre renda de PJ deve ser menor do que sobre renda do trabalho formal, mas este é um ponto que também merece debate.
 
E no caso das pessoas jurídicas propriamente?
Aí entra uma outra questão muito mais problemática, que o Brasil vai ter que fazer. O mundo inteiro está migrando para um modelo de tributar menos o lucro retido e cobrar uma alíquota maior sobre o lucro distribuído.
No Brasil, a gente cobra 34%: IRPJ de 25% e CSLL de 9%. A alíquota efetiva é menor. Mas vamos ficar com a nominal. Em alguns países, como na Alemanha, você paga 20% sobre o lucro. Se a empresa distribui dividendos, quem recebe paga mais, algo entre 15% e 20%. É parecido com a alíquota brasileira, mas a empresa paga 20% sobre o lucro retido. Mais tributo só se e quando o lucro for distribuído. A lógica é tributar menos o lucro usado para reinvestimento e expansão do negócio, e tributar mais o lucro que vira renda para o acionista.
Acho que esse é o modelo que a maioria dos especialistas defende no Brasil. A Receita Federal também tem isso pronto, estudado e mapeado, desde 2012. A gente fez esta avaliação em 2012, quando eu estava lá e o governo discutiu e propôs reforma da tributação sobre lucros no exterior, que depois gerou algumas dezenas de bilhões de reais em repatriação de ganhos não declarados anteriormente.
O Trump fez algo parecido com isso. Muitas pessoas reclamavam que a tributação nos EUA era muito alta em relação à Europa. Ele baixou para 20%. Na sequência, teoricamente, ele iria tributar mais o lucro distribuído também, mas essa parte ele ainda não fez.
A tendência mundial agora é essa. Devido à proliferação de paraísos fiscais desde os anos 1980, desde Reagan e Thatcher, nós estamos tendo uma guerra fiscal mundial de tributação direta. O que os países têm feito para não perder as sedes das empresas? Estão reduzindo a tributação sobre o lucro que fica na empresa e colocando o adicional na distribuição, mesmo que seja para o exterior, para combater paraíso fiscal.
Essa mudança terá que acontecer por aqui, ou o Brasil perderá sede de empresa para o Paraguai, Uruguai e outros países com tributação menor. E essa mudança casa com o que é preciso fazer no caso das pejotinhas.
 
 
Se essa mudança faz sentido sob vários aspectos, por que encontra tanta resistência?
Vou responder a essa pergunta com outra: por que não foi feito antes? Aí entramos em uma crítica válida, que se faz aos governos do PT, mas que poderia ser feita também ao PSDB. Por que não foi enfrentada essa questão da tributação direta?
A tributação direta é um tema polêmico, difícil em qualquer sociedade. Para onerar, para desonerar não.
Para onerar é sempre uma luta política muito grande. E tem uma questão operacional. No Brasil, a mudança tem que ser aprovada com um ano de antecedência para entrar em vigor, e geralmente a mudança é gradual para não desestruturar contratos e organizações produtivas bruscamente. Tudo isso não dá resultado muito rápido. Então, quando os governos estão com dificuldade fiscal, eles preferem soluções mais rápidas, mesmo que tecnicamente piores. 
Faz uma CPMF, dá uma pancada no PIS/Cofins, cria uma Cide sobre a gasolina. Foi o que FHC fez, e depois o Lula fez um pouco disso também.
E agora o Guedes quer fazer a mesma coisa. Todo mundo fez CPMF, mesmo sabendo que era ruim, para ter receita adicional e rapidamente em uma situação de grave restrição fiscal. A diferença do Guedes é que só ele acha CPMF um bom tributo.
Mas se tucanos e petistas acham CPMF um tributo ruim, por que fizeram? Para gerar receita rápida numa situação de grande desequilíbrio fiscal. Seja governo de esquerda ou de direita, diante de um grande desequilíbrio no orçamento e grande restrição política a reformas da tributação direta e indireta, as autoridades acabam optando por soluções mais simples e rápidas, mesmo que sejam tecnicamente piores.
E tem outro aspecto, aí mais no caso do PT. Quando houve a bonança dos preços das commodities, a economia crescendo, o governo arrecadando muito recurso com os tributos existentes, com renda de petróleo, mineração, o debate de reforma da tributação direta deixou de ser urgente. Dificilmente um governo, num período de bonança, discute aumentar a progressividade tributária.
Historicamente, democracias discutem aumentar progressividade tributária em períodos de crise, de guerra, ou quando a desigualdade é muito grande.
 
E o impacto da pandemia sobre o emprego e a renda, e impulsionando ainda mais os meios digitais, chegou a hora de tributar transações eletrônicas como Guedes defende?
O que o Guedes está falando não é nenhuma novidade. A questão é que ele parece preferir uma financial transaction tax a uma information tax. Mas a tendência mundial com essas novas tecnologias é ter um IVA sobre vendas, sobre o consumo, e uma tributação direta [sobre a renda]. Não vai ter mais alta tributação sobre folha. Tudo o que é financiado com tributação de folha vai cada vez mais ser financiado por outra base. Uma parte em tributo direto sobre lucro, outra parte em tributo indireto sobre consumo.
 
O ministro Guedes está sempre batendo na tecla que ele não está propondo uma nova CPMF. Tem cheiro de CPMF, cor de CPMF, mas não é CPMF?
Tudo isso é um papo meio de doido, né? É difícil a gente dizer o que o Guedes quer se nem ele apresentou proposta formal. É difícil comentar sobre o que não existe. Tem horas que ele fala de um modo que parece ser uma espécie de Cide-tecnologia, como a discussão na Europa hoje, aplicada às big techs. Quando você comprar algo na Amazon, teria uma Cide de um centavo, um por cento, ou algo pequeno, porque a transação foi remota, via tecnologia, e está matando o negócio local. Ou seria uma Cide sobre o faturamento de redes de informação, como Facebook, que teria que pagar um percentual sobre seu faturamento porque opera no mundo inteiro sem pagar tributação indireta em lugar nenhum. Isso é uma coisa. Um tipo de discussão sobre como tributar big tech em um mundo globalizado. Vários especialistas discutem imposto seletivo sobre serviços de informação, mas não há consenso nem saída clara ou simples.
Já no Brasil, na época do Cintra, eles diziam que queriam taxar todas transações em 0,40%, mas que o consumidor pagaria somente 0,20%, pois o estabelecimento comercial pagaria os outros 0,20%. Seria mais ou menos assim: quando você for ao restaurante, você paga 0,20% e o restaurante os outros 0,20% sobre a conta. Parece que é dividido, mas todo mundo que entende de economia sabe que os restaurantes irão colocar seus 0,20% na conta, ou seja, vai ser tudo pago pelo consumidor. 
É melhor chamar as coisas pelo nome certo. Para mim, pelo o que o Guedes falou, a proposta é uma nova CPMF, que pode até ser defendida como mecanismo temporário de levantar recursos em período de grande desequilíbrio fiscal.
 
Então você é a favor da CPMF? 
Não. Entendo que a CPMF pode ser mecanismo temporário para ajudar no ajuste fiscal, mas no Brasil de hoje, acho melhor investir na reforma da tributação direta e indireta, sem CPMF. As taxas de juro estão baixas, há capacidade ociosa para acomodar o estímulo fiscal sem comprometer a inflação. Logo o governo pode se financiar com emissão de dívida em vez de criar CPMF. E mais importante, assim como a insistência de Guedes na capitalização quase afundou a reforma da previdência, a insistência na CPMF pode bloquear avanços urgentes e necessários na reforma do PIS-Cofins e do imposto de renda.