Pode ser pretensioso dar a um livro o título de Como o mundo funciona (Intrínseca, 400 páginas). E é.
Mas seu autor, o cientista canadense Vaclav Smil, tem uma longa e reconhecida carreira. Escreve com absoluta segurança sobre diversos assuntos e sem ceder a modismos, destrinchando com clareza temas como industrialização, aquecimento global, pandemias, globalização e microchips.
Pela precisão de suas informações e didatismo de seus textos, Smil amealhou fãs ao redor do mundo. Bill Gates é um dos entusiastas de seu trabalho e sempre recomenda seus livros.
Neste seu mais recente trabalho, que acaba de ser lançado no Brasil, Smil se propõe a explicar como o mundo funciona em aspectos centrais não apenas para a economia, mas para a vida no planeta e seu futuro.
Uma das preocupações do autor, que já publicou mais de 40 livros, é reduzir o que ele chama de déficit de compreensão da população urbana educada em relação a atividades básicas – como a produção de alimentos.
As pessoas interagem a todo momento com celulares e computadores, trabalham nas atividades mais bem remuneradas no setor de serviços – mas não fazem a menor ideia de todo o processo necessário para colocar o arroz e o feijão na mesa.
Em um país como os EUA, menos de 1% da população trabalha no campo. Portanto, diz Smil, não é de admirar que a maioria dos habitantes não tenha nenhuma ideia sobre como o pão ou os cortes de carne chegam até eles.
Ou, poderia ainda dizer o autor, os jovens que picham ‘JUST STOP OIL!’ nos quadros famosos dos museus não sabem que abrir mão do petróleo aprofundaria a pobreza global, afetando principalmente os moradores dos países menos desenvolvidos.
Smil retoma alguns temas de seu livro anterior, Os números não mentem, falando, por exemplo, da relevância dos quatro pilares da civilização moderna – o concreto, o aço, os plásticos e a amônia – e como ainda estamos longe de produzi-los em volume suficiente sem utilizarmos combustíveis fósseis.
O autor, que fugiu da antiga Tchecoslováquia comunista quando tinha 25 anos, toca em pontos inconvenientes que costumam ser desconsiderados nos debates acalorados dos ativistas das nações mais ricas – como o tradeoff que, apesar dos avanços tecnológicos, ainda existe entre desenvolvimento e impacto ambiental.
Em vastas regiões do planeta, principalmente na África Subsaariana, o uso per capita de eletricidade equivale ao dos alemães e franceses em 1860. Essas populações teriam que triplicar seu consumo para alcançar um padrão de vida de países mais desenvolvidos.
“Inevitavelmente, essas demandas sujeitarão a biosfera a uma maior degradação,” afirma Smil.
O pesquisador esmiúça os melhores estudos recentes e conclui que é irrealista a meta de manter o aquecimento global abaixo de 2ºC até 2050.
“Hoje, a descarbonização completa da economia global até 2050 só seria concebível à custa de uma recessão econômica global impensável, ou como resultado de transformações extraordinariamente rápidas baseadas em avanços tecnológicos quase milagrosos,” sintetiza o autor. “A lacuna entre o desejo e a realidade é grande.”
Smil não se define como pessimista. “Sou um cientista tentando explicar como o mundo realmente funciona e usarei esse conhecimento para que possamos compreender melhor os limites e as oportunidades que teremos no futuro.”
No sétimo e último capítulo, o autor discute as dificuldades de adivinhar o futuro a partir de modelos e projeções – e lança dúvidas se de fato em breve a inteligência artificial vai superar a humana, a ‘singularidade’ prevista pelo futurólogo Ray Kurzweil.
Abaixo, um trecho desse capítulo.
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Os incorrigíveis tecno-otimistas continuam a tradição de acreditar em milagres e no alcance da salvação eterna. Não é raro ler como a inteligência artificial e os sistemas de aprendizado das máquinas nos levarão à “singularidade”. O termo vem do latim singularis, que significa “individual, único, inigualável”, mas neste capítulo se refere à noção de singularidade do futurista Ray Kurzweil, ou seja, ao significado matemático do termo como um ponto no tempo em que uma função assume um valor infinito. Ele prevê que, em 2045, a inteligência da máquina terá superado a inteligência humana, e o que ele chama de inteligência biológica e não biológica se fundirão, e a inteligência da máquina preencherá o universo em velocidade infinita. É o arrebatamento definitivo. Isso fará com que a colonização do resto do universo se torne uma missão necessariamente tranquila.
Em geral, a modelagem de longo alcance para sistemas complexos depende da produção de um leque de possíveis resultados limitados por extremos plausíveis. O apocalipse e a singularidade oferecem dois absolutos: nosso futuro terá que estar em algum lugar dentro desse espectro abrangente. O que tem sido impressionante sobre as modernas previsões do futuro é o modo como elas têm gravitado, apesar de todas as evidências disponíveis, em direção a um desses dois extremos. No passado, essa tendência à dicotomia geralmente era descrita como o choque entre os catastrofistas e os otimistas conhecidos como “cornucopianos,” mas esses rótulos parecem leves demais para refletir a recente e extrema polarização dos sentimentos. E essa polarização costuma ser acompanhada de uma maior propensão às previsões quantitativas com data marcada.
Vemos isso por todos os lados, dos carros (as vendas mundiais de veículos elétricos de passageiros chegarão a 56 milhões até 2040) ao carbono (a União Europeia terá zerado as emissões líquidas de carbono até 2050) até as viagens aéreas em todo o mundo (serão 8,2 bilhões de viajantes até 2037). Ao menos é o que dizem. Na realidade, a maioria dessas previsões não passa de simples suposição: qualquer número para 2050 obtido por um modelo de computador preparado com pressupostos duvidosos — ou, pior ainda, por uma decisão politicamente conveniente — tem uma vida útil muito curta. Meu conselho: se quiser entender melhor como será o futuro, fuja dessas profecias da nova era que trazem datas, ou as utilize como indício das expectativas e preconceitos predominantes em nosso tempo.
Por gerações, empresas e governos foram os principais produtores e consumidores de previsões. Os acadêmicos entraram no jogo em grande número a partir da década de 1950, e hoje qualquer um pode fazer previsões, mesmo sem nenhuma habilidade matemática, usando um mero programa ou fazendo previsões qualitativas sem qualquer fundamento, como tem sido a regra ultimamente. Como é o caso para tantas outras áreas que cresceram muito nos últimos anos (fluxos de informação, educação em massa), a quantidade das previsões modernas se tornou inversamente proporcional à sua qualidade. Muitas previsões não passam da simples continuação de trajetórias anteriores. Outras são resultado de complicados modelos interativos que incorporam um grande número de variáveis, executados conforme pressupostos diferentes a cada vez (na prática, o equivalente numérico de cenários narrativos). E algumas quase não têm nenhum componente quantitativo, sendo apenas narrativas fantasiosas, politicamente corretas em excesso.