As guerras no passado foram decididas pela capacidade de produzir armamentos forjados em aço, mas daqui pra frente, o poderio militar será medido pelo domínio da inteligência artificial, diz o historiador Chris Miller, autor de A Guerra dos Chips.
É daí que vem a determinação dos EUA de impedir que a China tenha acesso aos chips mais avançados usados nos sistemas de IA.
A China fez enormes avanços recentemente, como a produção pela Huawei de um novo celular 5G com processadores de 7 nanômetros desenhados e produzidos localmente. É o mais ‘chinês’ dos smartphones.
Quanto menores os chips, mais densos eles são em transistores, menor o consumo de energia e potencialmente maior será a capacidade computacional. A distância menor entre os transistores aumenta a eficiência.
Um chip de 7 nanômetros possui entre 95 milhões e 115 milhões de transistores por milímetro quadrado. No processador de 5 nanômetros, a densidade salta para entre 125 milhões e 300 milhões por milímetro quadrado.
A gigante taiwanesa TSMC fabrica os processadores de 7 nanômetros desde 2018, e os de 5 nanômetros, em larga escala, desde 2020. (No ano passado, começou a fabricar os de 3 nanômetros.)
“A China continua pelo menos cinco anos atrás nessa corrida,” Miller disse ao Brazil Journal.
Professor de história da Tufts University, Miller, de 37 anos, é especialista em Rússia, com três livros publicados sobre o tema, entre eles Putinomics: Power and Money in Resurgent Russia, de 2021.
Em A Guerra dos Chips, Miller se debruçou sobre esse novo front da disputa pela supremacia militar – e produziu o livro mais celebrado sobre essa nova guerra armamentista travada nos nanômetros dos processadores.
A seguir, os principais trechos da conversa.
O governo Biden acaba de impor uma nova rodada de restrições à venda para a China dos chips usados em sistemas de inteligência artificial. Essas barreiras dos EUA têm contribuído para retardar o desenvolvimento da inteligência artificial na China?
As novas proibições vão intensificar a dificuldade de as empresas chinesas terem acesso aos chips mais sofisticados, que são quase todos desenvolvidos por empresas americanas e fabricados em Taiwan, pela TSMC. A China não conseguirá adquirir esses processadores.
A questão é se a China terá a capacidade de fabricar esse tipo de semicondutor. No passado, isso seria impossível de ser imaginado, porque os chineses não dominam essa tecnologia.
Foram feitos muitos investimentos nos últimos anos dentro da política do governo de conquistar a autonomia em relação a outros países. Mas, apesar dos avanços, a China continua atrás nessa corrida.
Há notícias de que a Huawei teria fabricado um novo celular, o Mate 60 Pro, com tecnologia 5G e com um chip fabricado pela chinesa SMIC. É um sinal de que a China está prestes a conquistar a sua autonomia de processadores de última geração?
É cedo para afirmar isso. A SMIC acaba de apresentar o seu mais recente processo de produção, que lhe permite fazer processadores de 7 nanômetros.
Isso é algo que a TSMC faz em grande escala desde 2018, então a SMIC está pelo menos 5 anos atrasada em relação à TSMC.
A SMIC tem feito progressos, mas o gap em relação à TSMC não diminuiu nos últimos anos. Desde 2020 a TSMC fabrica processadores de 5 nanômetros.
Em outras palavras, a China ainda não dispõe de tecnologia para fabricar em casa os processadores mais avançados.
O novo chip da Huawei é uma conquista, mas é uma conquista altamente irracional, em termos econômicos.
Não é um grande avanço. Conseguiram fazer um celular um pouco pior do que o iPhone e potencialmente bem mais caro.
Só faz algum sentido porque o governo está disposto a despejar dezenas de bilhões de dólares na indústria local para produzir algo que é mais caro e menos eficiente do que os chips produzidos em Taiwan.
Mas o governo chinês tem se preocupado cada vez menos com eficiência e tem feito o possível para desenvolver o seu próprio ecossistema de semicondutores.
Do ponto de vista do governo americano, a supremacia militar na inteligência artificial é uma fonte de preocupação maior do que os aspectos empresariais da disputa com a China?
Sim, o governo americano está extremamente focado nas aplicações militares e de coleta e análise de informações.
Podemos imaginar as ramificações derivadas da capacidade de acumular quantidades gigantescas de dados e, em seguida, analisar essas informações rapidamente.
A questão é que os mesmos chips usados nos sistemas militares e de segurança são usados para fins civis. Portanto, as restrições dos EUA acabaram tendo como alvo os processadores dos sistemas de inteligência artificial de uso civil e comercial.
Estamos vendo críticas do setor privado americano com relação às barreiras impostas para as exportações. O CEO da Nvidia, Jensen Huang, afirmou que não existe outra China. É um mercado muito relevante para as empresas de tecnologia. Quão preocupado está o Vale do Silício com essas restrições?
Em primeiro lugar, quando você ouve os CEOs dos EUA criticarem publicamente a política de proibir as importações, a audiência que eles têm em mente para as suas declarações não é o governo americano nem o mercado.
Essas empresas vendem muito para a China, então precisamos ter cautela ao ler as declarações desses executivos. Eles estão sob muita pressão tanto do governo chinês como de seus clientes chineses.
As declarações feitas pelos CEOs dos EUA destinam-se ao público chinês. Não refletem necessariamente a realidade como um todo.
Em segundo lugar, os fabricantes desses chips estão hoje em uma situação muito melhor do que quando as restrições começaram a ser impostas, porque a demanda por processadores de inteligência artificial está muito forte nos EUA.
Eles vão vender menos para a China, é verdade, mas o que estamos vendo no momento é uma falta de chips de IA no mercado americano. Não vejo como elas terão perdas, ao menos no curto prazo.
Que tipo de reação podemos esperar da China, diante dessas novas sanções?
Desde 2014, Xi Jinping elegeu os semicondutores como uma tecnologia central e tem investido dezenas de bilhões de dólares todos os anos tentando desenvolver um ecossistema chinês autossuficiente.
Como eu disse, eles fizeram alguns progressos, mas ainda há um longo caminho até a autossuficiência.
Assim que a China desenvolver as suas capacidades internas e se aproximar da vanguarda tecnológica, ela poderá deixar de comprar dos fornecedores estrangeiros. Já vimos isso ocorrer no segmento inferior do mercado de chips.
É aí que reside a importância do novo celular da Huawei. Não é que seja especialmente bom, mas é bom o suficiente para que a China possa começar a proibir formal ou informalmente o uso de produtos estrangeiros como iPhones, no mercado chinês.
A estratégia central é desenvolver as capacidades internas e deixar de importar componentes de Taiwan, da Coreia do Sul ou de qualquer outro país.
A economia chinesa enfrenta uma desaceleração. Ao mesmo tempo, o governo vem reprimindo algumas empresas, particularmente as de tecnologia. Os EUA também passam por algumas dificuldades, mas é uma economia aberta, capaz de atrair as melhores cabeças do mundo. Essa é uma vantagem relevante, nessa corrida contra a China?
Neste momento, devido à piora no ambiente de negócios e às repressões no setor tecnológico em particular, as empresas chinesas estão percebendo que o principal cliente delas estará no mercado doméstico.
Os chineses ficarão de fora da tecnologia de ponta, serão retirados de segmentos das cadeias globais de valor. Os EUA vão se beneficiar de outros fornecedores desse ecossistema.
Isso coloca a China numa posição competitiva mais difícil, sem dúvida.
A TSMC está fazendo investimentos em unidades de produção nos EUA, na Alemanha e no Japão. Você acredita que a TSMC está se preparando para o futuro fora de Taiwan?
Não colocaria nesses termos. A TSMC está sob pressão para ter uma base de produção mais diversificada e recebeu incentivos dos governos para abrir instalações nesses países.
Mas se olharmos para os investimentos programados, a empresa está investindo em Taiwan tanto quanto nos demais países combinados.
Pelos planos atuais, a maior parte da produção permanecerá em Taiwan. É ali que continuarão sendo feitos os chips mais avançados.
Você vê um futuro no qual as empresas americanas sejam menos dependentes da TSMC?
É possível, mas a TSMC possui enormes vantagens que a manterão no centro dessa indústria por muito tempo.
As principais empresas de design de semicondutores, como Nvidia, Qualcomm e AMD, mantêm um relacionamento de longo prazo com a TSMC. É uma produtora muito eficiente, confiável, de baixo custo.
Estamos vendo uma guerra na Europa e agora uma possível guerra no Oriente Médio. Qual a sua análise sobre esse momento da história mundial? É possível imaginarmos uma escalada desses conflitos?
O que aprendemos nos últimos dois anos é que existem interesses partilhados e substanciais entre a China e a Rússia – e, cada vez mais, também envolvendo o Irã.
São reveladores disso fatos como os acordos amplos de partilha de produção industrial de defesa entre a Rússia e o Irã, por exemplo para a produção de drones militares.
É bastante revelador também o fato de Xi ter se encontrado recentemente com Putin mais assiduidade do que com qualquer outro líder internacional.
A possibilidade de uma guerra no Oriente Médio certamente eleva os riscos geopolíticos.
O mundo está se bifurcando entre dois blocos. Alguns países tentarão evitar ter de escolher lados, mas está ficando cada dia mais difícil, porque esses blocos estão agora ficando mais nítidos do que eram pouco tempo atrás.
Você tem estudado a Rússia há muitos anos. Que paralelos você traça entre a Guerra Fria original, entre os EUA e a União Soviética, e essa nova disputa entre EUA e China?
Existem paralelos no sentido de que existe uma competição entre dois países poderosos e que aparentemente vai durar anos.
É uma competição travada em muitas esferas – militar, diplomática, econômica e tecnológica. É uma competição que força outros países a tomar partido.
Todos esses fatores se assemelham à Guerra Fria entre a União Soviética e os EUA.