Quando o fantasma do metanol começou a assombrar os bares do Itaim ao Leblon, da Vila Madalena à Barra Funda, uma tecnologia relativamente simples desenvolvida por uma startup poderia ter minimizado a crise.
A Fact – fundada há sete anos pelos empreendedores Guilherme Boavista e Nicolas Walker – criou uma tag NFC criptografada que é colocada (ainda na fábrica) dentro da rolha da garrafa.
O dono do bar (ou o bebedor final) pode escanear a tag com o app da startup mesmo antes de abrir a garrafa e ver as informações da origem do produto, garantindo sua originalidade e procedência.
A solução é usada hoje em apenas uma bebida: a cachaça premium Cãna, que também pertence a Guilherme e Nicolas e é distribuída em 300 pontos de venda no Brasil, além de exportada para a Europa e Estados Unidos.
Três anos atrás, os empreendedores chegaram a apresentar a solução para algumas grandes multinacionais de bebidas e para a ABRABE, a Associação Brasileira de Bebidas, Guilherme disse ao Brazil Journal.
“Naquela época, o assunto não tinha uma relevância tão grande quanto hoje, e eles optaram por não priorizar o assunto. Depois houve mudanças na gestão e o tema não evoluiu mais,” disse o fundador.
Com a crise do metanol, no entanto, a solução da Fact voltou ao radar.
Numa reunião da Comissão de Saúde e da Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados, a deputada Laura Carneiro (PSD) chegou a apresentar o projeto da Fact e passou o contato dos empreendedores para o Ministério de Agricultura e executivos da Ambev.
“Essa é uma solução nova, de tecnologia, que pode contribuir muito para a problemática da adulteração de bebidas no Brasil,” a deputada disse ao Brazil Journal. “Acho que pode ser um produto muito interessante para ajudar nisso.”
O problema da falsificação de bebidas hoje é tratado com duas soluções, ambas falhas: a implementação de um QR Code nas garrafas para comprovar a originalidade da bebida, e a destruição das garrafas após o consumo, o que impede que os falsificadores tenham acesso às embalagens para envazar seus produtos fake.
“O QR Code tem diversas questões, mas os principais problemas são a durabilidade e a falsificação,” disse Guilherme. “A embalagem de vidro tem muito atrito e o QR Code vai se perdendo com o tempo. Além disso, é uma tecnologia fácil de corromper. Qualquer um consegue imprimir um QR Code e imputar a informação que quiser, copiando o que está no QR Code original.”
Nicolas, o outro fundador, explica que a tag NFC é diferente porque todas as informações que são registradas nela são criptografadas, tornando extremamente difícil copiá-la.
“Há três elementos importantes para viabilizar uma falsificação: o custo dela tem que ser viável; o grau de complexidade não pode ser muito alto, com o falsificador tendo acesso às mesmas ferramentas que os produtores do produto; e a proteção da tecnologia não pode ser muito boa. Tem que ser uma chave comum, fácil de arrombar, e não uma multilock,” disse Nicolas. “A tag NFC aumenta a complexidade em todos esses três elementos, tornando a falsificação bem mais difícil.”
Já a destruição das garrafas passa por um problema de logística e custo, já que fazer a trituração de todas as garrafas produzidas não seria uma tarefa simples. “Essa solução não evita o problema e gera um custo gigantesco para o Estado ou a iniciativa privada.”
Nicolas explica que a tag da Fact permite rastrear a garrafa da origem até o estágio final, com pontos de scan por todo o percurso.
Na prática, funciona assim: a fabricante pode criar pontos de escaneamento em diferentes etapas da cadeia logística — por exemplo, na saída da fábrica, na entrada no navio, na entrega ao distribuidor local e na chegada aos supermercados. Todas essas informações são registradas na tag da garrafa e podem ser visualizadas pela fabricante por meio de um dashboard.
O consumidor e os donos de bares e restaurantes também têm acesso a essas informações ao escanear a tag.
Nicolas dá o exemplo de uma bebida que saiu da fábrica, passou por um distribuidor e foi entregue no restaurante Makoto, em São Paulo. “Quando a garrafa chega no Makoto, eles podem escanear e se certificar na hora que a garrafa é autêntica, porque ela fez todo o percurso padrão da fábrica até o restaurante, sem nenhum desvio,” disse ele.
Quando um cliente pedir uma bebida no Makoto, ele também poderá pedir para escanear a garrafa que está sendo usada em seu drink, verificando na hora se o produto realmente é original.
Mas e se depois do uso a garrafa for vendida a um falsificador, com a tag ainda na rolha?
“Se a garrafa foi reenvasada, tanto o fabricante quanto o consumidor conseguirão ver que tem um problema por todo o histórico dela e o tempo que ela está circulando. Se qualquer coisa foge do padrão para aquele tipo de bebida, nosso sistema gera um alerta,” disse Nicolas.
Com a crise do metanol jogando luz sobre o problema, a expectativa dos fundadores é que a Fact seja adotada por grandes multinacionais ou que seja aprovado algum projeto de lei obrigando o uso das tags.
Nicolas disse que a startup retomou conversas recentemente com a Diageo e está avançando nas negociações.
“Nossa esperança é conseguir juntar todo mundo em torno dessa solução. O mais importante é proteger o consumidor final e dar segurança para ele voltar a beber. Não estamos pensando em lucrar com isso. Podemos até vender as tags a preço de custo,” disse ele.
No passado, havia um problema de custo. As tags eram caras, onerando o preço e consumindo a margem dos fabricantes, o que foi um dos motivos para as multinacionais e a ABRABE não terem abraçado a tecnologia.
Hoje isso já não é mais uma questão. Segundo Guilherme, as tags mais simples custam em torno de R$ 0,89 cada, um valor irrisório perto do custo de bebidas destiladas — e que poderia ajudar a salvar vidas.