Em 2016, a Empiricus se esforçou para trazer ao Brasil Daniel Kahneman, o prêmio Nobel de Economia de 2002 e autor de Rápido e Devagar, que morreu hoje aos 90 anos.
Kahneman não era qualquer Nobel. Existem pessoas verdadeiramente inteligentes, com sólidas contribuições acadêmicas, culturais e sociais. Existem gênios. E existe o inefável, único jeito possível de tentar descrever aqueles que transbordam qualquer taxonomia e irrompem com os paradigmas recorrentes.
Um dos grandes intelectuais do nosso tempo, Kahneman revolucionou a ciência econômica, devolvendo-lhe sua essência. A ciência jovem é também uma ciência social, embora todos os esforços a partir da década de 60 em Chicago, mais notadamente a partir de John Muth, tenham sido no sentido de afastá-la do óbvio e de tentar aproximá-la das ciências naturais.
O economista passou a estudar um sujeito que não encontramos na rua, batizado homo economicus. Ele acessa toda a informação relevante, sistematiza e processa tudo. Temos uma máquina de calcular probabilidades e cenários associados, capaz de maximizar nossa função utilidade (seja lá o que isso queira dizer) mesmo em contextos de perigo iminente.
Ao buscar se afastar das ciências sociais e formalizar-se com uma aproximação das exatas, a Economia ganhou o apelido de “invejosa da Física”. Com toda aquela racionalidade perfeita, a ciência ganhava em formalização e capacidade de modelagem. É uma pena que tenhamos esquecido de um pequeno detalhe: a realidade. Para fazer as decisões humanas e a complexidade das interações sociais caberem nas nossas planilhas e nos modelos de Eviews, convidamos o mundo real a deitar-se na Cama de Procusto. Cortamos suas pernas para fazer caber no nosso modelo.
Kahneman não foi exatamente pioneiro em contestar as prescrições das expectativas racionais e da racionalidade perfeita como um todo. Herbert Simon já havia proposto a noção de racionalidade limitada, em que os seres humanos não seriam máquinas com capacidade infinita, mas encontrariam importantes restrições em suas avaliações e em seus cálculos.
Mas junto a seu grande parceiro Amos Tversky, Kahneman foi além de Simon, com a formulação da “Prospect Theory”.
Os seres humanos não são apenas parcialmente racionais, como se tivessem uma visão 90% boa. Eles sofrem de vieses cognitivos estruturais, que acabam, por meio da adoção de uma série de heurísticas, regras de bolso e atalhos, nos empurrando, muitas vezes, em direções contrárias às conclusões sugeridas pela racionalidade estrita. Estamos inclinados a erros sistemáticos de julgamento.
Kahneman promoveu avanços formidáveis no campo da psicologia ao relatar os clássicos vieses de aversão à perda, ancoragem, reversão à média, viés de disponibilidade, viés de confirmação, efeito halo, entre tantos outros. Identificou não apenas como incorremos em falhas cognitivas diante de situações particulares, como, por exemplo, a forma com que tomamos decisão diante do risco, mas também explorou toda uma forma de compreensão do funcionamento geral do cérebro.
Sua formulação foi apropriada pela Economia nas famigeradas Finanças Comportamentais. Saímos do estudo platônico do homo economicus para estudar o homem, aquele que realmente toma decisão, investe, negocia, se entusiasma, se frustra, lucra, perde, cria coisas geniais, destroi outras.
Foi daí que veio seu merecido Nobel de Economia. Mas o sujeito foi tão especial que inspirou outro Nobel, o Richard Thaler por conta de suas contribuições em Economia Comportamental, cuja origem remete, claro, aos estudos de Kahneman & Tversky.
As contribuições, no entanto, não ficam circunscritas aí. Os estudos sobre felicidade conversam muito bem com a abordagem de Amartya Sen para medir o nível de sucesso de uma sociedade, indo além da medição do PIB per capita.
Nesse sentido, Kahneman ofereceu sólidas conclusões a partir de dados empíricos sobre a relação entre felicidade e dinheiro. Essas coisas estão ligadas, óbvio, mas só até certo ponto. Segundo suas medições, um prejuízo de um real nos causa um impacto psíquico duas vezes e meia maior do que o efeito de um lucro de um real. A perda machuca demais.
Seus trabalhos são tão profícuos que permeiam também a ciência política, as estratégias militares e a literatura.
O conceito de WYSIATI (What You See Is All That Is) pode ser útil para o entendimento da polarização política e social, por exemplo. O que se lê nos grupos do tio do zap passa a ser a única coisa que existe e, portanto, você rapidamente pula para a conclusão de que o adversário é um inimigo que precisa ser eliminado, sem que possamos ouvir o outro lado.
Em sua passagem pelo exército de Israel, Kahneman mudou o comportamento de alguns generais que esbravejavam em fúria contra pilotos que cometiam erros marginais no pouso. A alta patente achava que o próximo pouso correto se devia à bronca e às ameaças anteriores. Kahneman mostrou que os pilotos apenas estavam retornando à média. Os linchamentos públicos verbais e o clima de amedrontamento eram desnecessários.
Na literatura, ele conseguiu um dos feitos mais improváveis mesmo para pensadores de altíssimo nível: escrever um livro difícil e muito popular. A obra-prima “Duas formas de pensar: rápido e devagar”, uma síntese de seus principais trabalhos, conseguiu o feito inédito de juntar Wall Street (ou Faria Lima) e a psicologia.
Além de ensinamentos práticos e teóricos valiosos, o livro carrega aforismos maravilhosos, como:
“A forma mais fácil de aumentar a felicidade é controlar o uso do seu tempo. Você conseguiria encontrar mais tempo para fazer as coisas de que você gosta?”
“A ilusão de que entendemos o passado alimenta o excesso de confiança de que temos a habilidade de prever o futuro.”
“Uma pessoa que não está em paz com as suas perdas provavelmente vai fazer apostas que não aceitaria em outras circunstâncias.”
“A premissa deste livro é de que é mais fácil reconhecer os erros de outras pessoas do que seus próprios.”
“Dinheiro não vai lhe comprar felicidade, mas a falta dele certamente vai trazer-lhe a miséria.”
Quando almocei com Khaneman em 2016, a certa altura ele me perguntou a razão de nosso interesse por ele. E me disse algo como: “Acho que não tenho muito a contribuir com vocês. Eu não concordo muito com a maior parte dos consultores e analistas financeiros. Desconfio da maior parte deles.”
Respondemos que estávamos de acordo com a desconfiança. Todos rimos e ali se formou um laço espontâneo. Para Kahneman, deve ter durado alguns poucos segundos. Para todos os outros presentes, aquilo está intensamente vivo até hoje.
Esta talvez seja sua principal lição: humildade intelectual, a desconfiança sobre si mesmo. Kahneman era humano, demasiadamente humano.
Felipe Miranda é fundador da Empiricus.
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