A experiência de ir almoçar no Noma começou dias antes de chegar ao restaurante. Como viajei a Copenhague de última hora, eu não tinha reserva. Entrei no site diversas vezes e nada. Sold out.
Fui até a porta ver se alguém se comovia com o fato de que eu tinha vindo do Brasil, mas não tive sucesso — nem mesmo vi alguém para poder jogar o charme que havia ensaiado. Tentei mexer os proverbiais pauzinhos mandando mensagem para amigos do ramo, mas a resposta foi unânime: “É o Noma, Paula…”
Os dias foram passando, minha volta ao Brasil ia se aproximando e eu já estava (quase) conformada de que não conheceria o Noma. Como contei aqui, tinha comido muito bem em diversos lugares na Dinamarca.
Ao mesmo tempo, sabia que se não fosse ao Noma desta vez, teria que voltar para conhecer esse lugar que há anos me intrigava tanto. Afinal, o que faz um restaurante que serve comida nórdica ganhar tantas vezes o prêmio de melhor restaurante do mundo?
Eis que um dia, passeando feliz pela cidade que a cada momento me encantava mais, resolvi tentar a sorte no site de novo. Nada, óbvio. Atualizei a página mais uma vez e de repente estava lá: duas vagas para almoçar no sábado! Cliquei no link e fui seguindo página a página, esperando aparecer o erro. Preenchi os dados cadastrais, depois os de pagamento, revi os detalhes e de repente… a confirmação.
Entrei em estado de choque.
No dia do almoço, eu e minha amiga com quem estava viajando pegamos nossas bicicletas e partimos em direção ao restaurante. No caminho, pensei: “não acredito que estou pedalando para almoçar no Noma.” Tudo sobre aquela cena parecia surreal.
Chegamos na porta na mesma hora que outra dupla, que perguntou antes de entrar, “Que horas termina isso mesmo? Temos um voo às 17h.”
Achei engraçado como, para mim, aquela era a oportunidade de uma vida – enquanto para elas era um almoço qualquer que elas estavam encaixando entre uma exposição e um voo.
Criei várias teorias na minha cabeça sobre quem poderiam ser as figuras tão blasés (donas de uma farmacêutica alemã? proprietárias de estaleiros holandeses? herdeiras do império da pesca nórdica?), mas descobri mais tarde que eram apenas suecas morando em Veneza.
Ao entrar, fomos convidadas a passear pelo jardim estonteante e visitar uma das estufas do restaurante. O jardim funciona como uma antessala, o ponto de passagem entre a vida real e o universo paralelo que é o Noma.
Passadas as margaridas, girassóis e centenas de outras espécies cujos nomes nunca vou saber, chegamos à porta do salão, onde fomos recepcionadas por um time de 10 pessoas.
Todas nos saudaram em coro, e uma delas nos levou até nossa mesa, que ficava no lounge (descobri depois que existem mais duas salas: a principal e outra que até pouco tempo atrás era reservada a grupos e eventos particulares).
O lounge é muito simpático: uma mescla de arquitetura japonesa e design escandinavo, com toques particulares que trazem um aconchego incomum em restaurantes de fine dining. Pensei depois que essa sala, como muitas coisas do universo Noma, funciona como um Caminho do Meio; uma “terceira via” que mistura o melhor dos extremos — frio e quente, sofisticação e despretensão.
Uma vez sentadas no lounge, com vista para o jardim, foi dada a largada na sinfonia de 15 pratos e oito taças de vinho. Digo “sinfonia” porque o timing de cada prato e cada taça foi orquestrado com maestria. O tempo parecia suspenso, de maneira que tudo funcionava num compasso perfeito: nem muito rápido, nem muito lento.
Para minha sorte, que sou pescetariana, fomos na temporada dos vegetais (existem mais duas no ano: a das caças, no outono, e a dos frutos do mar, na primavera). Comemos de tudo: desde alcachofras fresquíssimas até um steak de SCOBY (cultura simbiótica de bactérias e leveduras), que se usa para fazer kombucha. Fico só pensando no trabalho que não deu para fazer esse último, considerando que demora até quatro semanas para criar um SCOBY, e depois é necessário cultivá-lo por toda uma vida.
Os pratos que não estavam deliciosos (a maioria estava) eram, no mínimo, interessantes. O meu favorito foi uma espécie de charutinho de folha de uva, recheado de cevadinha e de um molho quase doce. Por mais que eu nunca tenha comido nada parecido, me lembrou os charutinhos da minha infância; minha vontade era levar para casa uma caixa com cem deles.
Nas sobremesas, fiquei muito impressionada com a textura e a apresentação de um sorvete em forma de flor. Quando se olhava bem de perto, via-se que a flor era inteira estampada com favos de mel.
Fomos acompanhadas na jornada por alguns vinhos, incluindo um vinho laranja da Geórgia, um branco espanhol, um tinto e um rosé franceses, sempre naturais e de pequenos produtores. O meu favorito foi o da Geórgia, pois além do fato de que sou obcecada por vinhos laranjas, adorei que o rótulo continha um desenho com o nome e o rosto de todas as pessoas que produziram a garrafa.
Quem nos contou a história por trás desse vinho foi o John, um simpático menino inglês, um dos diversos garçons que nos serviram naquele sábado. No Noma, cada prato e cada taça é servido por um atendente diferente, que aporta a sua personalidade à experiência que está sendo apresentada.
Todos são jovens (ninguém parece ter mais de 35 anos) e usam tênis. Às vezes, nas interações com eles, eu sentia que estava falando com um amigo; mas aí a pessoa começava a falar sobre o prato com tanta maestria que ficava clara sua expertise, e eu ficava só imaginando o treinamento insano pelo qual ela deve ter passado.
Lá pelas tantas, um dos pratos foi servido pela Ana, uma brasileira que trabalha há 4 anos no Noma. Foi para ela que perguntei o que eram os gritos de guerra que vez ou outra interrompiam o silêncio da sala, e ela me explicou que era o chef comandando a sua orquestra. Ana contou que a brigada do restaurante é composta por 100 funcionários (80 na cozinha e no salão e 20 em outras funções, como no jardim) para servir 80 pessoas por dia (às sextas, quando eles fazem dois turnos, esse número salta para 160).
Os US$ 700 que custam para comer ali (são US$ 400 para o menu e mais US$ 300 para os vinhos) começam a fazer sentido.
Chegando próximo do final, nos sentindo extremamente leves mesmo após aquele banquete, pedimos para visitar as cozinhas. De imediato apareceu a Melissa, uma francesa que estava a postos para nos dar o tour. As cozinhas, divididas de tal forma que cada estação é responsável por um dos quinze pratos, são verdadeiras obras de arte, mas o que mais chamou a minha atenção foram os laboratórios de fermentação e inovação. É dali que saem as brilhantes invenções que podem demorar até cinco anos para serem criadas, como ouvi o chef René Redzepi contar a Dave Chang, do Momofuku, em seu podcast.
Foi nesse episódio, enquanto esses gênios da gastronomia discursavam sobre a ciência e a magia do umami, que Redzepi disse: “Algumas receitas nem são receitas — são dois ou três ingredientes que você mistura e espera. É como um processo sobrenatural. Você deixa o tempo, a temperatura, a umidade e os ingredientes agirem, e eles criam uma poção mágica.”
Ficou claro que por trás de cada simples vegetal, existe muita ciência e estudo (e talvez também um pouco de mágica).
Depois de quatro horas que simultaneamente pareceram minutos e uma vida toda, fui me dando conta que o Noma existe numa realidade paralela. Todos os lugares onde comemos depois foram trágicos — lugares estes que com certeza teríamos adorado pré-Noma, mas que agora pareciam brutos, agressivos, insensíveis e pesados. Por sorte já estávamos no fim da viagem.
Algumas pessoas têm me perguntado se o Noma é de fato o melhor restaurante do mundo. Acho que, em geral, o melhor restaurante não é aquele com várias estrelas. É um lugar onde se criam memórias afetivas; um local onde vamos sempre com a família, ou com um amigo, e nos sentimos abraçados (mas que, pensando objetivamente, serve uma massa mediana com um serviço ‘ok’).
A razão pela qual o Noma é, sim, um dos melhores restaurantes do mundo é porque ele consegue fazer exatamente isso: te pegar num lugar afetivo (o charutinho de folha de uva foi como ser pega no colo) e, ao mesmo tempo, te introduzir sensações totalmente novas.
Os críticos parecem concordar, já que ele não faz mais parte dos World’s 50 Best, pois passou a integrar uma nova lista: Best of the Best (são apenas oito). Recomendo fortemente a visita, mas considere reservar com antecedência para evitar grandes emoções.
Paula Nazarian é autora da newsletter Newz da NAZA.