No dia 27 de março de 2020, o papa Francisco rezou o “Urbi et Orbi” (“À Cidade e ao Mundo”), a bênção especial da Igreja Católica, diante de uma Praça de São Pedro vazia por causa da covid.
Ao fundo, apenas um auxiliar do papa e o crucifixo da peste negra, que teria salvado a cidade de Roma em 1522. Naquele instante, Francisco acolhia no crepúsculo do Vaticano as angústias e incertezas de bilhões de pessoas ao redor do mundo.
Para os católicos, concedia indulgência plena, ou seja, o perdão dos pecados. Para aqueles que não compartilhavam sua fé, ofereceu uma imagem de esperança e unidade raras neste turbulento século 21.
A morte de Francisco na manhã de hoje, aos 88 anos – o primeiro papa das Américas e do Hemisfério Sul, e o primeiro não europeu em 1.200 anos – encerra um papado marcado por imagens inesquecíveis, palavras de acolhimento, tolerância zero com os abusos sexuais do clero e saneamento das contas do Vaticano. Quem assistiu Conclave, o filme indicado ao Oscar em 2025, deve se lembrar da cena em que o cardeal Lawrence se irrita ao ser classificado como administrador, e não como pastor. Francisco foi ambos.
Ele representou a melhor tradição católica e secular dos últimos 100 anos, mesclando o rigor teológico dos jesuítas, ordem à qual pertencia, às práticas modernas de gestão – até consultorias foram convocadas para melhorar as finanças do Vaticano e punir abusadores de crianças e adolescentes.
Seu papado foi interpretado desde o início, naquele agora remoto 2013, como uma abertura política da Igreja Católica às questões que pareciam definir nossa era. Nos EUA, o governo Obama entrava no segundo mandato. A União Europeia, apesar dos pesares, conseguia administrar suas crises. Depois do papado de Bento 16, muito voltado a combater o que via como desvios teológicos e alienação das formas mais tradicionais do catolicismo, Francisco surgiu como resposta a um mundo que, após a crise de 2008, parecia pronto para uma era de esperança, simbolizada no slogan de Obama – Yes, We Can.
Francisco, vale lembrar, não alterou a ortodoxia católica em temas como casamento homossexual, aborto ou divórcio, mas fez aquilo que muitos padres ao redor do mundo já praticavam. Acolheu antes de julgar, repetindo o que fizera quando era padre e arcebispo de Buenos Aires.
Abriu uma porta para a reconciliação com a fé, em vez de submeter as pessoas ao rigor de uma palavra que, ele bem sabia, está aberta, para os católicos, a novas leituras inspiradas pelo Espírito Santo.
No catolicismo, a interpretação teológica não é apenas um exercício intelectual, mas uma abertura ao mistério – algo difícil de ser compreendido pela esquerda secular e, recentemente, pela direita populista, que passou a enxergar no Papa um herege comunista. Onde muitos viam apenas sinais ideológicos, Francisco ofereceu fé e acolhimento, seguindo o exemplo do Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados sois vós quando vos injuriarem, e perseguirem, e, mentindo, disserem todo o mal contra vós, por minha causa. Exultai e alegrai-vos, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram os profetas que foram antes de vós”.
Obviamente, fé, mistério e Espírito Santo não estão dissociados do tempo histórico.
O Papa Francisco viveu intensamente as questões de sua época. Amadureceu como sacerdote em uma Argentina conflagrada. Durante a ditadura, protegeu sacerdotes mais à esquerda sem atrair a atenção de um regime que fez desaparecer centenas de opositores. Na democracia, enfrentou calúnias sobre seu passado por, supostamente, não ter feito o suficiente.
Durante os governos Kirchner, o então cardeal Jorge Bergoglio costumava atacar a corrupção, a desigualdade e a pobreza em seu país, algo comum nas falas de vários religiosos católicos na América Latina – o Brasil é um caso clássico dessa postura do clero.
Porém, para Nestor e Cristina, as falas do futuro papa eram interpretadas como um ataque indireto. Além disso, Cristina Kirchner entrou em conflito com a Igreja em questões como o casamento igualitário, aprovado em 2010, e a educação sexual nas escolas, dois assuntos nos quais Bergoglio liderava a oposição cristã.
Por fim, o governo e muitos dos seus aliados na imprensa e na sociedade acusavam a igreja de cumplicidade com a ditadura militar (1976-1983).
Alguns setores mais radicais do kirchnerismo iam além, insinuando que Bergoglio não havia feito o suficiente para proteger sacerdotes perseguidos, algo que aparece no filme “Dois Papas”, de 2019. Mais tarde, até esses setores se retrataram dos ataques feitos no passado e a relação do papa com os setores políticos da Argentina se normalizou – até entrar em tensão de novo, agora pela direita, com Javier Milei.
Esse movimento pelas marés políticas é uma constante na trajetória do papa Francisco. Ele ascendeu às posições mais altas da Igreja Católica em um papado conservador como o de João Paulo II – foi criado cardeal no primeiro consistório público do século, em 21 de fevereiro de 2001. Ele não teria chegado lá se fosse um Anticristo, como grupos católicos reacionários tentaram classificá-lo nos últimos anos. E, nos últimos anos, se tornou uma figura amada pelos setores progressistas, que passaram a dar ênfase mais às suas palavras de acolhimento do que suas decisões teológicas.
Ao longo de seu pontificado, Francisco publicou quatro encíclicas, os documentos mais importantes que um papa pode escrever, todas marcadas por temas que já pareceram mais consensuais em um passado não tão distante: a preocupação com o clima (Laudato Si’), a fraternidade universal (Fratelli Tutti), a importância do amor na família (Amoris Laetitia) e a evangelização baseada na alegria e no acolhimento (Evangelii Gaudium). O mundo que agora se despede do papa dificilmente compreende uma de suas homilias mais belas, que dialoga com diversas tradições cristãs. Nela, ele afirma que Deus não tem um padrão fixo para escolher seus santos. Já elegeu pecadores como Santo Agostinho e homens profundamente piedosos, como São Francisco de Assis, de quem o papa tirou o nome que, pela primeira vez, foi adotado como título pontifício. Para Francisco, a santidade não é sinônimo de perfeição – mas de serviço a causas que vão além de si mesmo, do próprio ego.
A Igreja Católica sob Francisco cultivou uma fé profunda e uma abordagem prática. Ele não estava preocupado em derrotar hereges, impor sua visão ou dividir o mundo entre amigos e inimigos. Bebeu de outras tradições cristãs mais tolerantes. E talvez a forma mais simples de explicar isso seja recordar um cisma do século IV, no norte da África. Naquele tempo, surgiu uma heresia chamada donatismo, inspirada pelo bispo Donato de Casa Nigra. Os donatistas defendiam que a Igreja deveria ser uma comunidade de santos, sem espaço para pecadores, e que o clero deveria ser impecável em todos os aspectos da vida. Santo Agostinho, conhecendo profundamente o pecado, combateu essa visão. Assim como Francisco, compreendia uma verdade essencial: a Igreja não está no céu, mas na terra. E é nesse equilíbrio entre a inspiração da eternidade cristã e os desafios do mundo real que Francisco se inscreve.
Quando o papa dialogava com outras religiões, beijava os pés de presidiários, andava de ônibus, torcia para o San Lorenzo e realizava outros gestos que incomodavam certos setores, não o fazia por populismo barato ou para reduzir a solenidade da fé. Ele fazia isso porque, como qualquer estudante de teologia sabe, a etimologia da palavra religião remete a religar o homem ao sagrado. E não é possível religar o céu à terra sem ter os pés bem plantados no chão.
Sua morte marca o fim de uma era de esperanças. Francisco veio de uma tradição católica que não temia o mundo, mas dialogava com ele. Ele elevou o nível do debate com sofisticação intelectual, sem criar espantalhos ideológicos. Sua teologia era a do diálogo e da profundidade, não do medo e dos inimigos imaginários. E, ao mesmo tempo, evitava devaneios acadêmicos vazios, que sempre criticou com a energia ítalo-argentina que o caracterizava.
Francisco morre em um mundo muito diferente daquele que o viu ascender ao papado. Seu legado imediato está nas mãos dos cardeais do conclave e do próximo papa. Mas, independentemente do que a Cúria romana fará com seu legado, uma coisa é inegável: Francisco foi um dos papas mais importantes da história da Igreja. Mostrou que é possível ser católico sem medo do futuro. E isso, por si só, já é muito, num tempo em que o medo move a história.