Niède Guidon – a arqueóloga cuja tenacidade deu ao Brasil dois parques nacionais e dois museus, e que elevou o Parque Nacional Serra da Capivara ao posto de um dos sítios arqueológicos mais importantes do mundo – morreu hoje em São Raimundo Nonato, a cidade vizinha à reserva. 

A certidão de nascimento indica que Niède viveu 92 anos – mas suas descobertas, que ajudaram a revolucionar as teorias de ocupação humana nas Américas, permitiram à franco-brasileira uma existência milenar.

Antes de Niède, a comunidade científica tinha como referência a teoria de Clóvis, que defendia que os primeiros habitantes do continente americano chegaram pelo Estreito de Bering, que fica entre o Alasca e a Sibéria, há cerca de 13 mil anos.

Depois de Niède (e outros pesquisadores, é claro), já se aceita a tese de que havia humanos no continente há pelo menos 25 mil anos. 

A arqueóloga ia mais longe e defendia que a ocupação das Américas não teve uma proveniência apenas e é muito mais antiga, tendo sido iniciada há mais de 100 mil anos — um número ainda visto com ceticismo por outros pesquisadores.

“O trabalho de Niède foi essencial para provocar, para fazer uma crítica àquela perspectiva mais ortodoxa que não aceitava nada além de 12 mil anos para o povoamento das Américas,” Eduardo Neves, o diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, disse ao Brazil Journal.

Com ascendências francesa, italiana e portuguesa, Niède Guidon nasceu em Jaú, no interior de São Paulo, no dia 12 de março de 1933. 

Graduou-se em história pela USP e em arqueologia pela Sorbonne, em Paris, de onde regressou em 1963. No mesmo ano, trabalhando no Museu Paulista da USP, teve o primeiro contato com o que viria a se tornar o projeto de sua vida.

Ao visitar no museu uma exposição sobre os sítios arqueológicos de Lagoa Santa (Minas Gerais), uma delegação do Piauí disse a Niède que o estado nordestino tinha pinturas rupestres semelhantes àquelas.

A arqueóloga tentou ir de São Paulo até São Raimundo Nonato de Fusca para conhecer o local, mas o período chuvoso de dezembro impossibilitou a conclusão da viagem.

Niède só pousaria no Piauí anos depois.

Em 1964, após ser erroneamente denunciada como membro do Partido Comunista, precisou deixar o Brasil. 

Voltou à França e, enquanto lecionava na Escola de Estudos Avançados em Ciências e tirava um doutorado em pré-história na Universidade de Paris, conseguiu apoios institucionais para empreender uma missão de pesquisa no sul do Piauí. 

A primeira ocorreu em 1973 – depois disso, foram 50 anos de casamento com a região.

Com a ajuda de pares franceses e brasileiros, Niède encontrou e catalogou diversas pistas de vida pré-histórica na região, como pinturas rupestres e vestígios de fogueiras e ferramentas. 

Em um artigo publicado na revista Nature em 1986, Niède defendeu que as evidências encontradas no sítio arqueológico do Boqueirão da Pedra Furada apontavam para a existência de vida humana no local há pelo menos 32 mil anos (o número aceito pela comunidade científica hoje é de 25 mil).

Mesmo sem a chancela de parte da comunidade científica internacional, Niède e equipe continuaram trabalhando e, ao todo, catalogaram mais de 1.300 sítios arqueológicos no local.

Em 1979, Niède – já estabelecida como uma espécie de entidade regional – conseguiu que o Governo Federal criasse o Parque Nacional da Serra da Capivara e, um ano depois, criou a Fundação do Homem Americano para estruturar as pesquisas na região.

O parque foi chancelado como Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO em 1991.

Quem acompanhou Niède de perto ou de longe afirma que, apesar das conquistas científicas, seu legado não se restringe à arqueologia.

Ela buscou integrar as comunidades da região e lutou por recursos para manter e proteger o parque.

“Nos primeiros anos aqui [na Serra da Capivara], percebemos que a pobreza que reinava na região nunca ia permitir proteger o legado pré-histórico do parque. Uma pessoa com fome só pensa como vai resolver o problema imediato,” Niède disse à agência de notícias Mongabay dois anos atrás.

O Parque Nacional da Serra das Confusões, os museus do Homem Americano e da Natureza e a criação dos cursos de graduação e pós-graduação em arqueologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco, em São Raimundo Nonato, também só existem graças à sua liderança.

“Ela tinha um olhar grandioso e viveu o projeto da sua vida não só protegendo o patrimônio, mas também a região, as pessoas,” disse a museóloga Maria Ignez Mantovani.