Para entender a obra de um grande artista, basta decifrar o ser humano por trás dela. Normalmente não falha.

A série O Lendário Martin Scorsese, disponível na Apple TV+, radiografa com franqueza e objetividade este gigante do cinema que entregou joias como Táxi Driver (1976), Os Bons Companheiros (1990) e O Lobo de Wall Street (2013).

Sob a direção de Rebecca Miller, o ótimo documentário em cinco episódios traz um roteiro cheio de superações. Scorsese, estranho em todos os ninhos, era um nome improvável de se firmar como um dos grandes de Hollywood. O feito só se tornou possível porque ele transformou em diferencial aqueles que poderiam ter sido seus maiores impedimentos: a personalidade intensa e o apego às origens.

Descendente de italianos da Sicília, Martin Charles Scorsese cresceu no Queens em meio a uma gente pobre, caótica e à flor da pele. A violência morava ao lado, e não era raro o sangue tingir as calçadas. O catolicismo fervoroso confortava a família e não tardou para o garoto, pequeno e asmático, desejar ser padre. A igreja era o seu contato com o ambiente externo.

Nos verões, o problema respiratório se agravava, e o pai levava o filho para se refrescar no ar-condicionado dos cinemas. Ali, Scorsese conheceu o mundo por filmes tão diversos quanto O Mágico de Oz, Duelo ao Sol e Ladrões de Bicicleta.

Menino sensível entre os brutos, usava a imaginação desenhando e recortando os personagens dos longas, a ponto de a família duvidar da sua masculinidade. “Eu queria fazer filmes, mas de onde venho não se fazem filmes,” conta ele, aos 82 anos, em um dos depoimentos.

A morte de um amigo, aos 18, tirou Marty do casulo. Se a vida podia acabar a qualquer momento, que seja guiada pela intensidade, pensou ele. O jovem estudou cinema na New York University, solidificou uma carreira sob influências tão heterogêneas quanto o neorrealismo italiano, a nouvelle vague francesa e a comédia americana, e criou personagens inspirados nos homens do subterrâneo que conhecia tão bem.

O primeiro episódio, Um Estranho numa Terra Estranha, explica a construção da sua personalidade e se mostra o mais surpreendente. Os demais quatro capítulos, Toda Essa Filmagem não Faz Bem, Santo/Pecador, Cinema Total e Diretor do Método, entretanto, confirmam como a postura de menino excluído permaneceu irredutível e alavancou uma obra tão coerente. Quando cobrado pelo excesso de violência nos filmes, o diretor se define como um cineasta em busca da verdade, “e existe violência no mundo”.

Diante de tantos demônios, Scorsese penou para lidar com os seus. Afundado na cocaína no fim da década de 70, foi tirado do buraco pelo ator Robert De Niro com o argumento de que só ele poderia dirigir um roteiro sobre o autodestrutivo boxeador Jake LaMotta. Era Touro Indomável, e De Niro sabia que o amigo renovaria energias com a trama densa e sombria.

“É preciso ser cruel para ser artista,” diz o biografado. Scorsese magoou muita gente. Nunca desejou se casar, mas graças à formação católica acreditava que com uma mulher ao lado adquiriria segurança. Foram quatro casamentos, entre eles um com a atriz Isabella Rossellini, até encontrar a paz no amor com Helen Schermerhorn Morris, em 1999.

A ex-produtora de televisão é mãe de Francesca, de 25 anos, a terceira filha do cineasta e a única a quem realmente se dedicou. Helen convive com o Parkinson há mais de duas décadas, e sua intimidade é flagrada em cenas pungentes do documentário.  

Em um dos depoimentos mais fortes, Domenica Cameron-Scorsese, de 49 anos, a filha do meio, afirma que decidiu trabalhar com cinema para fazer parte da vida do pai. “Meu pai ama os atores, e quando encontra um colaborador fiel eles são mais que família,” diz a atriz, que participou de Cabo do Medo (1991) e A Época da Inocência (1993).

Os colegas Brian de Palma e Steven Spielberg contribuem com boas entrevistas. Sobre Os Bons Companheiros, Spielberg faz uma análise que traduz o estilo narrativo acelerado de Scorsese: “Filmes costumam ter quatro marchas, mas Os Bons Companheiros tem catorze”.

Entre as atrizes que comandou, Sharon Stone, protagonista de Cassino (1995), é a mais sincera. Ela revela que o diretor só dava atenção a De Niro e Joe Pesci e, naquele clube machista, ela se sentia excluída até intimá-lo para uma conversa que transformaria a relação dos dois.

Mesmo reconhecendo que Hollywood não é o seu lugar, Scorsese sobrevive a todas as fases da indústria há quase 60 anos. Consolidou prestígio no cinema independente, ficou deprimido ao ser escanteado por executivos que só valorizavam as bilheterias, e soube se associar a quem viabilizaria projetos ambiciosos, como Leonardo DiCaprio.

O jovem astro, recém-consagrado em Titanic (1998), foi a salvação para alavancar filmes esnobados devido aos altos orçamentos. O primeiro deles foi o épico Gangues de Nova York (2002), uma obsessão de Scorsese há mais de 20 anos. A parceria prosseguiu com Os Infiltrados (2006) e O Lobo de Wall Street (2013), colocando DiCaprio no lugar de favorito que pertencera a De Niro por 30 anos.

Obras biográficas raramente atingem uma imparcialidade que permita ao público acreditar que está diante de um retrato fiel. Neste caso, temos uma exceção.

O Lendário Martin Scorsese apresenta um sujeito cheio de fraquezas e contradições, mas que soube usar as adversidades a seu favor e se consagrou um dos maiores cineastas de todos os tempos.