“Nunca houve uma mulher como Gilda!” — este slogan de lançamento atraiu o público aos cinemas e fez de Rita Hayworth uma das mulheres mais famosas de sua época.
Peço licença aos deuses da publicidade para readaptar a frase e dizer que nunca houve uma mulher como Maria Martins.
Para entender que não se trata de uma hipérbole, convido os leitores a ir ao MASP visitar “Maria Martins: desejo imaginante,” a mostra que fica em cartaz até fevereiro, e a partir de março na Casa Roberto Marinho, no Rio de Janeiro.
A exposição traz 45 trabalhos, entre esculturas e gravuras, produzidos nas décadas de 1940 e 1950, além de 41 publicações e fotografias que buscam relatar de forma (obviamente insuficiente) a vida da artista.
Enfatizo o ‘insuficiente’ porque Maria Martins não cabe em qualquer recorte expositivo, por melhor que este seja. Mulher extremamente fascinante, viveu plena e intensamente, com muita liberdade e coragem, sem pudores, até a última gota de vida — de preferência de um bom uísque, sua bebida favorita. Até nisso, esteve à frente de seu tempo!
Reducionistas a relembram como a brasileira que foi “a amante de Marcel Duchamp”. Para muito além desse aspecto, digno de uma fofoca menor, existia em Maria uma múltipla artista, escultora, pintora, desenhista, escritora e poeta, e uma grande mulher que encantou o mundo. “Sem esquecer que vim dos trópicos”, como escreveu em um de seus poemas, figurou ativamente na cena artística dos anos 40-50 no badalado eixo NY-Paris.
Casada com o embaixador brasileiro Carlos Martins, morou nos EUA, França, Japão e conviveu com diversos chefes de Estado — conseguindo até a proeza de entrevistar Mao Tse Tung. Mas foi no mundo das artes que Maria deixou sua marca mais indelével. Amiga de Mondrian, Picasso, Leger, Breton e Brancusi — e de mecenas como Peggy Guggenhein e Nelson Rockfeller, entre muitos outros expoentes do meio artístico global — Maria frequentava e era íntima do supra-sumo da vanguarda.
Em 1943, expôs seus trabalhos com Piet Mondrian, na galeria Curt Valentin, em Nova York. Seu trabalho vendeu; o de Mondrian, não. Para compensar, ela comprou a obra do amigo por US$ 800 e doou ”Broadway Boogie Woogie’’ ao MoMA. Hoje, essa obra é um dos quadros mais relevantes da coleção modernista do museu.
Suas obras eram fluidas, mas com distorções de forma poéticas, ainda que por vezes pudessem parecer grotescas ou assustadoras. De forma intrigante, contorcia figuras que pareciam cobras ou uma floresta densa e ameaçadora. Ela capturava uma ansiedade e angústia, que pareciam transpor suas lutas internas para a forma tridimensional.
Foi ousadíssima ao tratar da temática sexual a partir da perspectiva feminina, de modo poético, transgressor e pioneiro. Louise Bourgeois, que também trabalhou o tema e ficou mundialmente conhecida por isso, veio anos depois. Até Maria, nenhuma artista havia apresentado a sexualidade de um modo tão invasivo, com a nudez à flor da pele, explicitando a carnalidade tão diretamente.
Um crítico de arte da época, Jayme Mauricio, resumiu bem a dimensão da artista: “Maria foi a personalidade que, sem abdicar jamais de sua feminilidade, representou no Brasil moderno do século XX tudo o que significou o Surrealismo (…): enciclopédica, liberta e libertária, iluminou os brasileiros – mulheres e machões recatados – com sua arte e seu saber, e sobretudo com sua coragem e paciência com os preconceitos.”
Maria Martins morreu no Rio de Janeiro em 1973 aos 78 anos. Deixou por escrito todas as instruções para seu velório, que fosse realizado no Museu de Arte Moderna da cidade, e que ela estivesse rodeada por suas esculturas, com um véu e vestido de gala dourado, que deixou separado, exigindo que servissem a todos seu uísque favorito. Até na despedida deste mundo foi original e atrevida.
Rita Drummond escreve sobre arte no Brazil Journal.