O Agente Secreto, filme de Kleber Mendonça Filho em cartaz nos cinemas, é uma história de pessoas que querem apagar o passado para tocar a vida adiante.
Protagonizado por Wagner Moura, o longa discute a violência que afeta personagens capazes de escolher o silêncio por sobrevivência ou conforto.
No Carnaval de 1977, Marcelo (interpretado por Moura) volta de carro ao Recife disposto a recuperar a paz perdida em São Paulo. Um pesquisador de tecnologia, ele teve a reputação abalada depois de desafiar um poderoso industrial (Luciano Chirolli).
Na entrada da cidade, o protagonista abastece o fusca em um posto de gasolina, onde se choca ao ver um corpo apodrecendo no chão. A polícia chega mas, em vez de investigar o cadáver, foca em extorquir Marcelo – e, não conseguindo, os policiais contentam-se com um maço de cigarros.
A cena de abertura já conecta o filme a um Brasil que parece não evoluir.
Marcelo havia deixado na capital pernambucana o filho de 5 anos, Fernando, aos cuidados do sogro (o ator Carlos Francisco), depois que perdeu a mulher (a atriz Alice Carvalho). Não tarda a ser perseguido por dois pistoleiros (Roney Villela e Gabriel Leone) contratados para entregar sua cabeça ao industrial paulista.
É através deste filho que O Agente Secreto fortalece a contemporaneidade da narrativa. As cenas finais mostram o médico Fernando (o mesmo Moura) desinteressado em investigar a morte do pai há quase cinco décadas. “Esta questão parece mais importante para você que para mim,” o personagem diz a uma moça que lhe entrega gravações que poderiam elucidar um provável assassinato.
Ao estabelecer esta conexão entre o passado e o presente, O Agente Secreto se impõe como uma obra sobre a negação de uma memória que pode reativar traumas ou abalar uma suposta tranquilidade. Fernando acredita que nada ganhará ao vasculhar a história dos pais.
É o oposto de Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, vencedor do Oscar de filme internacional em março, que emociona multidões pela batalha de uma mulher (a atriz Fernanda Torres) em responsabilizar as autoridades pelo crime que destruiu sua família.
O Agente Secreto é um ótimo thriller de suspense, com variações políticas e psicológicas, daqueles que prende boa parte dos espectadores em mais de 150 minutos, mas pode entediar outros tantos.
Para facilitar a vida do público, Mendonça aposta em uma bela reconstituição de época através da direção de arte de Thales Junqueira e da fotografia de Evgenia Alexandrova, que reforçam o estilo vintage. O uso de câmeras analógicas contribuiu para a imagem granulada que remete à estética dos filmes nacionais da década de 1970.
No elenco coadjuvante, os destaques são as luminosas presenças de Maria Fernanda Cândido, Hermila Guedes e Luciano Chirolli, além da participação de Tânia Maria, o respiro cômico na trama pesada.
Mas o filme é inegavelmente de Wagner Moura.
Moura é um ator com uma personalidade tão forte e marcante que, muitas vezes, o público o enxerga antes do próprio personagem que ele interpreta – como ocorre, por exemplo, com gigantes como Selton Mello ou Jack Nicholson.
Mas neste filme, Moura consegue que o personagem se sobreponha à sua personalidade, que o público veja o personagem antes da imagem a que está acostumado.
O ator, o primeiro brasileiro a ser premiado em Cannes na categoria, interpreta praticamente três personagens: Armando (o nome real do personagem), Marcelo (o nome que ele assume para voltar ao Recife) e seu filho Fernando, já na idade adulta.
Em comum, Moura recorre a uma introspecção, uma economia de recursos extraordinária.
Em contraste a esse minimalismo, Mendonça parte para o esbanjamento visual e narrativo em inserções dispensáveis – como a aparição surrealista da “perna cabeluda,” uma lenda urbana do Recife que mais confunde que acrescenta ao roteiro. Depois volta a encantar ao provocar a memória afetiva dos cinéfilos em referências a Tubarão, de Steven Spielberg.
Da mesma forma que em Tubarão ninguém fica tranquilo, em O Agente Secreto o perigo também está à espreita. Por isso, Fernando, que, na infância, tinha pesadelos só de ouvir falar na fita de Spielberg, quer se esquecer do que aconteceu com o pai.
Hoje ele trabalha em um banco de sangue, lida com a população carente e sabe que todos vivem sob riscos iminentes.
Ao contrário dos integrantes da família Paiva, de Ainda Estou Aqui, Fernando se tornou o herdeiro solitário de um passado que não valoriza. Na sua formação, o espelho foi o avô, um homem simples.
Ainda Estou Aqui é outro ótimo filme. O longa de Salles conta, entretanto, com elementos sob medida para agradar a Academia de Hollywood e o público: tragédias familiares, personagens que superam adversidades e uma estética mais direta e clara.
Mesmo repleto de qualidades, O Agente Secreto gera um crescente desconforto, principalmente por causa de um roteiro que não explica várias situações e, mesmo no seu desfecho, escapa de um final catártico. O público sai do cinema com interrogações, o que é saudável, mas isso torna a história menos palatável e restringe a comunicação.
Todas estas ousadias podem influenciar na decisão da Academia de Hollywood. É possível sim que O Agente Secreto esteja entre os cinco indicados ao Oscar de filme internacional, e Moura, pelo prestígio em sua escalada profissional, tem chances de figurar entre os finalistas de melhor ator.
O Agente Secreto, porém, é cinema de autor, daqueles que não parecem preocupados em seduzir o mercado, e possui bem mais o perfil do Festival de Cannes; não à toa, voltou da França com os prêmios de direção e interpretação masculina.
Até para controlar expectativas, é bom salientar que os prêmios de Cannes são tão ou mais relevantes que o Oscar, se pensarmos em arte e não em bilheteria.
Kleber Mendonça Filho nunca buscou um caminho fácil. O Som ao Redor (2012), Aquarius (2016), Bacurau (2019) e Retratos Fantasmas (2023), seus longas anteriores, são a prova disso.
Desta vez, ele radicalizou em um filme mais cerebral do que emotivo – e, mesmo quando se imagina que ele vai falar ao coração, é pela cabeça que tenta conquistar o espectador. Algumas vezes consegue. Outras, não.
Mas é arte da melhor qualidade.











