Não conheci Robert Gottlieb – e essa será uma das lacunas irreparáveis da minha carreira como editor.

Gottlieb, o icônico editor da Simon & Schuster, Knopf e editor-chefe da New Yorker, faleceu esta semana aos 92 anos, deixando um legado de centenas de livros editados – vírgula por vírgula, cortando adjetivos e polindo autores.

Mas, felizmente, há Turn Every Page, disponível na Apple TV, que mostra a relação entre o editor e Robert Caro, talvez o maior pensador e escritor político do nosso tempo; obcecado em entender o que significa o verdadeiro poder político, suas origens e consequências.

O documentário – que o boca a boca está transformando em um fenômeno cult – estuda a essência da relação profissional e pessoal entre dois gênios do mundo editorial.

Robert GottliebA colaboração entre eles resultou em cinco livros, todos best sellers: The Power Broker, que biografa Robert Moses e seu imenso poder na cidade e no Estado de Nova York, e os quatro volumes de The Years of Lyndon Johnson, a biografia monumental que destrincha a carreira e o governo do presidente americano. Há anos, Caro trabalha no quinto e derradeiro volume, que ninguém sabe quando será publicado.

O documentário é dirigido por Lizzie Gottlieb, filha do editor, e a estrutura é feita a partir de depoimentos tomados em separado — os dois nunca são entrevistados juntos. Quando, no final do filme, concordam em aparecer juntos numa sessão de edição, exigem que o microfone seja desligado: o processo é muito íntimo para ser compartilhado publicamente.

Com figuras paternas complicadas, Caro e Gottlieb tiveram infâncias difíceis.

Caro veio de uma família humilde e ficou órfão de mãe aos onze. Costumava ir ao Central Park para ler – e assim, não ter que voltar para casa. Conseguiu ir para uma escola de excelência (um desejo da mãe ao falecer), e dali para Princeton. Antes de procurar uma editora, passou sete anos escrevendo seu primeiro livro — período em que teve que vender sua casa para sustentar a família.

Gottlieb, cujo pai era um advogado bem-sucedido e raivoso, morava próximo ao Central Park mas nunca o frequentava; ficava o dia inteiro em casa lendo. Durante todas as refeições na residência dos Gottlieb, cada um tinha seu próprio livro à mesa.

“Li mais que qualquer pessoa no mundo,” Gottlieb diz no filme. “Era arrogante. Sempre duvidei de tudo, menos da minha capacidade de leitura e julgamento. E o tempo provou que estava certo, apesar das minhas centenas de erros.”

Robert CaroAntes de The Power Broker, poucos sabiam quem era Robert Moses, e era dado como certo que ninguém leria o livro.

Moses nunca se candidatara a um cargo eletivo, mas construiu mais que qualquer faraó, rei ou imperador. Caro queria entender de onde vinha seu poder político, que moldou Nova York como a conhecemos e durou décadas.

O livro ganhou o Pulitzer, tornou-se um best seller e teve mais de 40 reimpressões.

O filme vai sendo construído com as opiniões de autor e editor sobre a relação entre os dois. As perguntas da diretora do documentário, intercaladas com a história pessoal dos dois, são perfeitas para que o espectador entenda como funciona e é construída esta relação. Ambos tinham cerca de 90 anos e, ainda bastante lúcidos, falaram com sinceridade atroz sobre o que fez sua parceria brilhar – lições válidas para a vida.

A grande força do documentário está nos 50 anos de discussões e rixas acaloradas sobre cada ponto e vírgula do texto de Caro, o ego de cada um e o indefectível respeito mútuo.

Mas acima de tudo, Turn Every Page é um documentário sobre o perfeccionismo em seu nível mais elevado, a busca intransigente pela qualidade, e um compromisso com a excelência que, temo, seja cada vez mais raro no nosso tempo.

Com uma edição tão brilhante quanto os personagens – e um ritmo que nada deve a séries como Succession, Mad Man ou The Sopranos – nada é dito em vão. Vale anotar e aprender com cada frase, mesmo que você não pertença ao mundo literário.

A beleza da obra está aí; dois homens com idade avançada lutando contra o tempo, preocupados em entregar o melhor.

Robert Gottlieb escreveu uma carreira brilhante até a última página. Entre os autores que editou estão John le Carré, Doris Lessing, Toni Morrison, Anthony Burgess, Ray Bradbury e Salman Rushdie – além de personalidades como Bill Gates, Bill Clinton, Bob Dylan e a publisher do Washington Post, Katherine Graham.

Agora, Caro terá que terminar seu quinto volume e entregar a edição final em outras mãos.  Deus queira que seja um discípulo de Gottlieb – e que este documentário inspire novos autores e velhos editores na busca da excelência.

Jorge Oakim é o publisher da Intrínseca.

Abaixo, a máquina de escrever Smith Corona Electra 210 na qual Robert Caro, hoje com 87 anos, ainda trabalha no quinto e último volume de sua biografia de Lyndon Johnson.

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