PARIS – A loucura é um tema recorrente na arte. De Van Gogh cortando a própria orelha no surto que o levou à internação, até obras emblemáticas como o grito de desespero de Munch, a perturbação mental e as artes plásticas sempre se cruzaram e fizeram história.
O assunto, claro, é infinitamente rico e complexo, como mostra A Figura do Louco: da Idade Média aos Românticos, uma exposição original e fascinante que explora a representação da figura do bobo, ou do maluco, desde a Idade Média, em cartaz aqui no Louvre até 3 de fevereiro.
Na língua francesa, o termo único ‘fou’ abrange uma variedade de possibilidades: dos tolos aos bobos da corte, passando por pessoas com distúrbios mentais.
Decididos a mergulhar nos diversos aspectos da loucura, dentro de um recorte europeu do século XIII ao XIX, os curadores do Louvre reuniram no recém-reformado Hall Napoleão 340 pinturas, tapeçarias, manuscritos, esculturas e objetos cotidianos oriundos da França, Inglaterra, Holanda e Alemanha.
A mostra é acompanhada por textos primorosos, sob curadoria e pesquisa de Élisabeth Antoine-König, a chefe do Departamento de Artes Decorativas, e Pierre-Yves Le Pogam, o chefe do Departamento de Esculturas.
Para promover a mega exposição, o Louvre fez uma parceria inédita com Lady Gaga nas redes sociais na época do lançamento do filme Coringa: Delírio a Dois. A curadora da exposição fez análises da loucura do Joker com cenas do filme e obras da mostra, em um vídeo que permanece disponível no site do Louvre.
No texto inaugural, os curadores explicam que a exposição “examina a onipresença dos loucos na arte e na cultura do cristianismo ocidental na Idade Média e no Renascimento, mas não traça a história da loucura como uma doença mental. Seu progresso é projetado para mostrar diferentes aspectos da figura do louco, um personagem-chave na ascensão do mundo moderno.”
Na Idade Média, a ideia de loucura estava intimamente ligada a questões religiosas. O louco desafiava a ordem divina e representava a falta de Deus, o que poderia ser resolvido com exorcismo, prisão ou pena de morte. Muito retratada por pintores da época, a rainha Joana I de Castela teria enlouquecido depois do falecimento de seu marido Filipe, o Belo. Deposta, ficou 46 anos reclusa.
Nesse mesmo período, a figura de trajes listrados e coloridos, com sinos nas calças e um cedro – o bobo da corte – se institucionalizou na dinâmica real e nas pinturas oficiais. Integrante do meio mais íntimo da realeza, o bobo era o único que tinha liberdade para zombar do rei (ou dizer-lhe verdades).
Da corte, o bobo pulou para a cidade. No final da Idade Média, a figura alegre e subversiva era presença obrigatória nas festividades urbanas. O calendário cristão programava intervalos específicos de descontração, uma espécie de loucura autorizada pela Igreja. Naquele tempo, as igrejas tinham sua própria festa dos tolos entre o Natal e a Epifania: jovens padres ocupavam o lugar dos seniores e descontraíam rituais.
O Carnaval passou a desempenhar um papel semelhante: uma autorização litúrgica para os fiéis colocarem a fantasia para dançar e beber antes da rigidez da Quaresma.
Duas obras literárias contribuíram para a popularização da loucura: o Navio dos Tolos, de Sebastian Brant (1458-1521), e Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam (cerca de 1467-1536). O primeiro, publicado em 1494, contava uma jornada à imaginária terra dos tolos. O segundo, escrito em latim, era destinado à elite acadêmica, mas popularizou-se de tal forma que influenciou a Reforma Protestante e teve um profundo impacto na filosofia, literatura e nas artes plásticas.
Com o título atribuído de O navio dos tolos, uma referência ao livro de Brant, uma pintura de Bosch do final do século XV é um dos destaques da exposição. (Bosch é conhecido por pinturas complexas que exploram a moral e a loucura.)
Na obra em destaque, os personagens estão em um barco pequeno, entregando-se aos prazeres da bebida e luxúria, alheios ao fato de que estão naufragando. O bobo da corte, caracterizado por seu traje listrado e sininhos, está sentado sozinho e cabisbaixo no topo do mastro. Se todos vivem no vício ou na tolice, o louco não tem o que oferecer.
Como escreveu Erasmo há 500 anos atrás: “A pior loucura é querer ser são em um mundo de loucos.”
No Iluminismo, a figura do louco muda drasticamente. A loucura não é mais um castigo divino: a racionalidade quer entender a psique e o inconsciente. Uma obra emblemática presente na exposição é o quadro de Robert-Fleury que retrata o psiquiatra Philippe Pinel, em 1795, no asilo para mulheres de La Salpêtrière. A cena mostra o assistente de Pinel removendo as algemas de ferro que os insanos eram obrigados a usar, um episódio-chave na história da psiquiatria.
A mostra também reforça o papel de grandes obras literárias nas pinturas do Romantismo, destacando a loucura de Macbeth, de Shakespeare; o personagem Quasimodo, em Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo, e a peça O Rei se Diverte, do mesmo autor, sobre o bobo na corte de Francisco I, que se tornou mundialmente famoso na ópera Rigoletto, de Verdi.
Duas obras impactantes nas salas finais merecem destaque. A pintura de 1862 do polonês Jan Matejko (considerado um dos maiores pintores históricos da Europa), chamada Stanczyk durante um baile na corte da Rainha Bona em face da perda de Smolensk, representa o paradoxo do palhaço triste. O bobo da corte aparece derrotado e desolado ao saber da queda do reino.
E a pintura realista de Gustave Courbet, O Homem Desesperado. No autorretrato, o artista está à beira de um penhasco prestes a cair. A perturbação é enfatizada pelos olhos esbugalhados, a mão levantando o cabelo em um gesto angustiado. A mão direita se estende no vazio, na direção do observador, como se buscasse alguma coisa para se agarrar.
Os curadores deixam o visitante com um questionamento derradeiro: são os loucos de hoje os mesmos do passado?