“O livro, como a colher, pertence àqueles objetos que são inventados de uma vez por todas,” define Roberto Calasso.

Colher e livro, pondera o escritor italiano, podem ter formas variadas, mas são todas variações de um modelo básico. Os meios eletrônicos trouxeram novas possibilidades de leitura, mas já está estabelecido que tablets e e-readers vieram complementar – e não substituir esse utensílio funcional e inesgotável que é o livro em papel.

Calasso tinha autoridade para falar sobre o tema. Morto em 2021, aos 80 anos, passou a vida em torno dos livros – como editor da editora italiana Adelphi Edizioni, onde começou a trabalhar com 21 anos; como autor de obras primorosas como As núpcias de Cadmo e Harmonia, uma revisão erudita e envolvente dos mitos gregos; e como leitor voraz e criterioso que dominava cinco línguas modernas e três antigas.

Recém-lançado no Brasil, Como organizar uma biblioteca (tradução de Patricia Peterle; Companhia das Letras; 142 páginas) traz quatro textos de Calasso sobre o mundo do livro e da literatura.

Leve mas jamais superficial, a obra não entrega exatamente o que o título anuncia: quase não se encontram em suas páginas ensinamentos objetivos sobre como colocar as estantes em ordem.

Renascentista tardio, o escritor florentino oferece mais do que isso: um guia para que o leitor – iniciante ou experiente – aprofunde sua relação com esse objeto inesgotável. Abaixo, recortamos e comentamos dez preciosas orientações de Roberto Calasso.

1. Deixe marcas nos livros

“Sempre desconfiei daqueles que querem conservar os livros intactos, sem nenhum sinal de uso. São maus leitores,” diz Calasso em uma das tantas passagens de Como organizar uma biblioteca que merecem ser sublinhadas. Você não gosta de sublinhar? Tudo bem, cada leitor deixa sua marca particular em seus livros. Há aqueles que sublinham, que escrevem comentários nas margens, que deixam discretos pontos junto aos trechos relevantes.

O escritor argentino Jorge Luis Borges evitava deixar marcas nas páginas com texto, mas fazia extensas notas nas folhas de guarda, em letra pequena (“caligrafia de inseto,” dizia). Calasso só baixa um mandamento categórico: todas as intervenções devem ser feitas a lápis, pois a caneta deixa uma “lesão imedicável” no livro.

2. Não despreze a baixa literatura

Sabe aquela turma que se orgulha de ler só altíssima literatura? Pois é uma gente muito chata. Ou, nas palavras elegantes e irônicas de Calasso, trata-se de uma “muito entediante estirpe”. Não se deve desprezar o que o florentino chama de “livrecos”. No entanto, ele não oferece exemplos de boa literatura barata – e é bem difícil imaginar um homem como Calasso lendo Dan Brown ou Stephen King. Enfim, que cada leitor busque seus parâmetros de qualidade.

3. Encontre sua livraria ideal

Eis como o autor define essa livraria: “é aquela em que toda vez se compra pelo menos um livro – e muitas vezes não é aquele (ou não só aquele) que se pretendia comprar ao entrar”. Dica adicional: você não vai encontrar isso nas grandes redes livreiras (até porque, no Brasil, muitas estão quebrando).

4. Compre livros para ler mais tarde

Bem mais tarde: dois, cinco, 10, 40 anos depois. Quando afinal chegar a hora de lê-los, eles talvez já estejam esgotados nas livrarias e será até difícil de achá-los nos sebos.

5. Não exiba a biblioteca à toa

Basta uma olhada rápida na cor e na estética das lombadas em uma estante para, segundo Calasso, vislumbrar a “paisagem mental” do dono da biblioteca. Recomenda-se, portanto, que se resguarde a intimidade, evitando o exibicionismo livresco. O ensaísta italiano até exagerava no decoro: gostava de cobrir seus livros com material semitransparente, para torná-los “menos reconhecíveis”.

6. Biblioteca fajuta nunca!

Calasso achava desolador ver entrevistas de políticos e sindicalistas italianos falando em frente a prateleiras nas quais não se via nada digno de leitura – apenas anais de congressos, relatórios, anuários, catálogos e “talvez ainda alguma poesia de um parente”. Temos visto coisa pior na era do home office. Um exemplo patético é o fundo falso imitando uma biblioteca que um desembargador do Amazonas montou em casa – e que acabou caindo durante uma audiência virtual.

7. A regra do bom vizinho

“Na biblioteca perfeita, quando se vai em busca de um livro, acaba-se pegando um que está ao seu lado e que se revela ainda mais útil do que aquele que procurávamos.” Essa é a “regra do bom vizinho,” que Calasso atribui ao historiador da arte alemão Aby Warburg.

O florentino só não nos diz como chegar a esse arranjo miraculoso. Será necessário descobrir relações inusitadas entre livros e autores – e dispensar a ordem convencional das bibliotecas, como se aprende no item seguinte.

8. Ordem alfabética nem sempre funciona

Embora útil, a ordem alfabética por autor pode “esconder” o livro que buscamos. Calasso explica: “De alguns livros – sobre cogumelos, sobre plantas na Cornualha, sobre famosas partidas de xadrez e tantos outros casos –, o assunto é lembrado, mas frequentemente, o autor é esquecido”.O autor recomenda criar alguns blocos temáticos na biblioteca. O desafio talvez esteja em encontrar a ordem certa para a variedade de temas possíveis.

(Já que Calasso falou de cogumelos, cabe lembrar que o Brazil Journal publicou, no ano passado, a resenha de um livro sobre fungos – A Trama da Vida, de Melvin Sheldrake. E o resenhista já não consegue encontrar o livro em suas estantes…)

9. Exclua livros

Existem “livros molestos,” ensina o autor, que se recusam a se integrar a uma biblioteca. Não são necessariamente livros ruins: apenas não casam com os volumes com que devem dividir o espaço. Calasso conta a história de um amigo seu, um editor holandês que herdou os livros do pai – com quem tinha sérias diferenças – e não conseguiu de forma alguma incorporá-los à sua própria biblioteca.

10. Admire o livro não lido

Francesco Calasso, pai de Roberto, foi professor de História do Direito na Universidade de Florença. Sua biblioteca tinha uma grande coleção de textos jurídicos, que ia do século 16 ao 19.

Na infância e na adolescência, Roberto passava ao lado desses volumes antigos, de autores cujos nomes lhe pareciam “estranhos e hostis”. Ainda que não tenha aberto esses livros, o jovem Calasso não podia deixar de ler suas lombadas – e assim foi se construindo uma “sutil fascinação” pela biblioteca paterna.

Pois é preciso não apenas ler, mas também conviver com os livros.