Há mais de 100 anos, o escritor Mario de Andrade (1893-1945) cunhou o termo “pianolatria” para satirizar a paixão dos brasileiros pelo piano.
Andrade, claro, era um fã de música e do instrumento, mas muitas vezes se irritava com o seu mau uso, que entrava no currículo cultural de moças à procura de um bom casamento (a destreza nas teclas indicaria que seriam prendadas), e fazia os pais destas moças atormentar as escolas de música, jurando que elas eram a reencarnação de Mozart ou Beethoven.
O pianista carioca Jonathan Ferr, por seu turno, pode dar início a uma nova era de pianolatria, desta vez por motivos mais nobres. Ao lado do pernambucano Amaro Freitas e do carioca Yoùn, ele encabeça um time de instrumentistas que traduzem a linguagem do jazz para a periferia de onde vieram, adicionando elementos como ritmos afrobrasileiros, soul music e hip hop.
Recentemente, Ferr lançou seu terceiro álbum, Liberdade, no qual dialoga com nomes de alta patente do cenário afro-brasileiro – há participações dos rappers Rashid e Tássia Reis, das cantoras Tuyo e Luedji Luna e da inglesa Jesuton, entre outros.
O resultado remete a Black Radio Experiment, a série do pianista Robert Glasper lançada em 2012 na qual o jazz foi o ponto de partida para experimentos com a soul music e o rap. (Este ano, o terceiro volume de Black Radio ganhou o Grammy de R&B.)
“Sou fã do modo com o qual o Glasper trabalha os diferentes gêneros musicais”, diz Ferr, que chegou a conhecer o instrumentista americano durante um de seus rasantes pelo país. “Eu o levei para o samba, o Glasper ficou amarradão,” exulta o carioca, que também aponta as combinações rítmicas do italiano Ludovico Eunadi como fonte de inspiração.
Liberdade, contudo, passa longe de ser uma xerox. Ferr é um pianista de personalidade e conta ali sua história. Ele nasceu e foi criado em Madureira, na zona norte do Rio. Canções como Correnteza e O Amor Não Morrerá remetem ao Black Rio, um movimento surgido naquela cidade nos anos 70 e divulgado à farta nos bailes do subúrbio, onde o samba brasileiro dialogava com a soul music e o funk americanos. São as únicas canções nas quais Ferr é o solista vocal. “Eu acho que o disco tinha de começar e terminar comigo,” explica.
Ferr, de uma certa forma, conta sua história recente através de seus trabalhos. Seu álbum anterior, Cura, de 2021, foi gravado e lançado durante a pandemia. “A liberdade vem então depois de você se curar,” filosofa, explicando o título do novo trabalho. “Meus álbuns são momentos de experimentação pessoal.”
No caso de Ferr, essa experimentação chegou através de rituais de auto-descobrimento pelo ayahuasca e pelo auto-isolamento ao qual se propôs quando iniciou o processo de criação do álbum. Ele se mudou do Rio para São Paulo, onde iniciou os diálogos com os convidados do álbum.
Mas a filosofia de Liberdade – que pode soar estranha para alguns – é acompanhada por uma musicalidade vibrante, um diálogo bem engendrado entre os distintos universos musicais de Ferr e convidados. É um apanhado de canções pop acessíveis e bem tocadas – destaques para o toque ao piano em O Sol, que conversa com as rimas do rapper Rashid, ou o canto delicado de Tássia Reis na grudenta Gota, onde o instrumentista assume os teclados eletrônicos.
O amálgama entre o pop e o cancioneiro sofisticado é intencional. “Quero que minha música seja ouvida pela senhorinha do Acre e pelo cara que tem dez mil discos em sua coleção, que ambos me ouçam e me compreendam,” Ferr disse ao Brazil Journal.
Jonathan Ferr é um triunfo do esforço.
O piano surgiu em sua vida na infância, depois de assistir aos programas do instrumentista Pedrinho Mattar na televisão. “Comprei vários vinis dele semanas atrás,” lembra.
Seu primeiro instrumento foi de brinquedo, e ele tinha de dividi-lo com os irmãos – “piano é instrumento caro.” Ferr trabalhou em diversos subempregos para bancar seu sonho e praticamente implorou para ganhar uma bola na Escola de Música Villa-Lobos, no Rio.
Em 2019, lançou seu primeiro álbum, A Trilogia do Amor. Hoje em dia, seu talento é reconhecido pelos curadores dos principais festivais de jazz do país e do mundo e ganha matérias elogiosas no The Guardian.
Mas tão importante quanto esse reconhecimento pela mídia é sua representatividade junto ao povo da periferia.
Mês passado, Ferr esteve em Salvador para uma apresentação. Enquanto esperava pelo check-in no lobby do hotel, tamborilou algumas músicas no piano que estava ali. Ao final do mini recital, foi saudado pelos funcionários.
“Elas se identificaram com uma pessoa da mesma origem que elas tocando um instrumento tido como elitizado. Eu vim para conectar,” emociona-se. Que Jonathan Ferr seja o exemplo de uma nova onda de pianolatria, dessa vez na periferia.
Foto: Renan Oliveira